26.5.22

Club 36



Parada aqui. Esperando você aparecer na janela o outro lado da rua, o seu carro na porta. Você deve estar trabalhando e eu aqui à toa delirando com Maysa nos fones. A Maysa Meujardim. A da minha infância. Da Bottles na Duvivier. Da ponte Rio-Niterói. De Brasília azul. Numa ponte alta você precisa abrir as duas janelas do carro para o vento passar e ir embora. Como a gente. Acho que você não vai aparecer hoje. É tarde. Uma cama me espera. Uns livros na cabeceira. Podem esperar. Se eles podem, talvez eu possa. Atarefados com letras, eles não esperam você. Quem sabe talvez possam. Possam, sonoridade estranha. Possum, gambá. Posse, patrulha. Os primeiros acordes de "Resposta". Se alguém não quiser entender e falar, pois que fale. Eu não vou me importar com a maldade de quem nada sabe. Que aqueles olhos eram verdes, não azuis. Em nenhum momento Manuel Bandeira diz serem azuis. O verso são dois oceanos não pacíficos. Tem mar verde. Tem mar azul. O verde é mais fundo. Morre-se no verde. O azul é bem melhor assim. Como as mangas mordidinhas por morcegos são mais doces. Ela me ensinou. Parada aqui, no Club 36, quem me trouxe foi uma canção. Você já deve estar dormindo. Me dê a mão.



5.5.22

Caminho dos Pescadores



Ana mergulhava no Posto 6. 

Águas tranquilas, quase mortas. Sujas. Mas havia barcos na areia. Sol fraco. Amendoeiras. Velhos jogando vôlei ou damas nas mesas de concreto. Eu mergulhava no Posto 1. Onde o mar simula ser calmo. Sol no zênite. Se ondas devoram o Caminho dos Pescadores, só sobram corpos e a pedra. Vi Ana na casa de Heloísa. Olhei-a de relance. Sentada no sofá. Óculos escuros. Cabeça baixa. Como se fosse mergulhar no próprio peito. A professora nos conduziu para seu escritório. Combinamos rapidamente algo sobre poesia e fomos embora. Ana no sofá. De soslaio. Uma amiga em comum convidou-me para o lançamento de Ana num bar. Eu fui. Ana autografando. Eu bebendo. Tão longe. Não comprei o livro. Não lembro. A mesa. Soube de sua morte no domingo, na manhã depois do acontecido. Alguém me ligou. Eu estava no Posto 5. Seca.



1.5.22

1 poema de Jehan Bseiso



 Depois de Alepo


Aprendi a ler cedo.

Mas a verdade é que às vezes eu gostaria que as letras continuassem sendo desenhos estranhos por mais tempo, antes que as palavras impusessem sua tirania, antes que outras línguas fizessem da minha boca ingente o seu lar.

Não o digo literalmente.

Um dia você disse, Vamos voltar para Alepo.

Não literalmente.

Habib, há quatro anos gritávamos por mudanças e agora somos cidadãos fronteiriços.

Vamos da Turquia ao Líbano, ao Egito, mas não encontramos Alepo.

Temos vale-alimentação, critérios assistenciais e esporádica empatia.

Não escrevo mais poesia.

O barco está afundando,

literalmente,

mas não quero abandoná-lo.

Ele tem cheiro de jasmim e você, sabor de liberdade.

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Jehan Bseiso é uma poeta, contista e pesquisadora palestina voltada para o tema dos refugiados de guerra. Trabalha no Médicos Sem Fronteiras desde 2008 em países como Afeganistão, Paquistão, Iraque, Etiópia, entre outros. Atualmente é diretora do MSF-Líbano. Trad. Maira Parula, 2022.