24.10.21

Holy Steps

  


Steps in the Garden.

I quickly throw the key of Eden down the privy.

Two bullets in the drum.

I kneel down.

I pray.

O Lord.

And wait.

The first I reserve for Thee:

Ego Te multiplicabo et faciam Te in multitudinem populorum.




23.10.21

Egito

 

Já nos despedimos desde o começo. O seu corpo pequeno vigiado por outro grande. E um dia na rua você descobre que há outros corpos pequenos como o seu. Mas você não os quer por perto. Eles andam em bando aos gritos e olham para você atendendo a um rancor antigo. Um rancor que não é o seu. Você tem medo. Treme. Quer voltar para a casa que dizem ser a sua – para o conforto de corpos grandes reconhecíveis. Lá são gritos que já conhece. Você é uma criança – dizem também. Mas como posso ser o que mais temo? E daí você precisa provar que não é criança. Que não se quer por perto. E cresce depressa. A gram pressa. Surpreendendo os corpos grandes da casa, que vigiam o seu novo corpo ainda mais. E um dia você descobre que não quer ser como eles. Por que continuo temendo ser o que sou? E não quer ser mais corpo nenhum. O corpo dói-se todo por dentro. Quanto maior, mais forte a dor. A coita de suportá-lo, carregá-lo para todo lado. Então você se anestesia. O toque de mãos suaves faz você esquecer-se da dor por alguns aquis e alis. Mas a dor volta. A dor não se despede. É perpétua. Você odeia o seu corpo e procura esquecê-lo pensando. Eu não sou esse corpo, eu sou o que está dentro da minha mente. Espírito – dizem. Você os manda à merda, silente. Não acredita nisso. O fastio de dar nomes a todas as coisas. Encasulá-las. Angústia – dizem. Depressão – crocitam. Você quer que as sentenças se fodam, junto com as línguas que as pronunciam. Dobra a dose e dormesca. Por um momento não vê a dor. Não vê o corpo. Não vê mãos suaves. Está no Egito. No que parece o Egito dentro da sua casa, que não parece alhures nenhum. Amanhã o corpo se reapresentará e com ele a dor. A dor não se despede nunca. O corpo... ah, sim, este você pode despedir.  


 


21.10.21

Mormaço

 

– É um biscoito amanteigado que Olga Breno entrega a Raul Schnoor para  ele comer. Você reparou?

 

– Sim. Levei anos para perceber o detalhe.

 

– Biscoitos amanteigados num barco à deriva.

 

– Olga corta o dedo ao arrancar a folha de alumínio da lata. O indicador?

 

– Penso que sim. Mas cortou-se com a faca ao descascar uma laranja. Olga limpa o sangue na água salgada.

 

– Que laranja? Nada disso. A faquinha corta a folha interna de alumínio da lata e depois Olga puxa a folha e se fere. O que eu sei é que o corte no dedo não estava no roteiro. Aconteceu.

 

– Não estava? Impossível.

 

– Não.

 

– Um neto de Raul me falou que estava sim. E tem importância a Mulher 1 olhando para a sua ferida. Seu desespero com o próprio agir fracassado.

 

– E o Mario? Que disse?

 

– Nenhum comentário.

 

– Eu soube que Olga revelou que foi real. Ela se cortou mesmo.

 

– De propósito? Por orientação do diretor? Ou saiu da cabeça dela?

 

– Aí já não sei. Mas não creio. Ela não tomaria esta liberdade. Pode ter sido acidental. Mario era rígido com o passo a passo. E Olga, muito obediente a ele.

 

– Talvez, mas no caso ele não iria cortar e refazer a cena com tudo engatilhado. Mais trabalho, tempo, despesa. Luz do dia desperdiçada.

 

– Sim. Deixou rodar e acabou acrescentando mais peso ao infortúnio. Você sente o corte na sua pele. Uma agonia.

 

– De fato. Sabe que vi tantas vezes esse filme que frequentemente me pego de ombros caídos como Raul manuseando dois gravetos para não pensar em nada. Ou lembrar-me. Entregue. Imóvel.

 

– Cinema à deriva. O salto no vazio. Gosto disso. Mar. Anonimato. Imagem-pensamento...

 

– Eu também. Essa estética de TV, enredos prognosticáveis, temas repisados, falas por cima de falas, um ruído ensurdecedor quando não sussurros, caras e bocas higienizados, atuações robóticas, um capinzal de moral e doutrinas, não suporto mais. Nem assisto.

 

– ...duelo de olhares ressentidos à beira do túmulo de uma mulher-amante. A frase conclusiva de violenta beleza inesperada.

 

– Sim. “E se eu lhe disser que ela é morfética?”

 

– Todo linguagem poética. Trêmula. Oceano atemporal.

 

– Será que os biscoitos vieram da Bhering do primo de Mario, onde Olga, ou melhor, Alzira, trabalhava?...

 

– Falta pouco tempo para o filme completar 100 anos.

 

– Por aqui não haverá outro que o supere.

 

– Tão cedo. E Mario morreu na merda. Teso.

 

– Mundéu.

 

– Vamos fazer os pedidos agora?

 

– Pra mim um cálice de aguardente. Doze graus. Isso lá é temperatura de primavera?

 

– Que horas são?

 

– Tarde. Uma hora.

 

– Menos uma. Menos uma.

 

 

 

14.10.21

De um momento para o outro


Poucas são as coisas minhas que não as comprei. Cabeça, tronco e membros. Por todo o resto paguei. Caro. Muito caro. Ataúde. Catacumba. A navalha. A navalha roubei da gaveta ministerial do sólido filho da puta do meu pae, aquela massa desconjuntada de artérias, negócios e reprovações. Em dias raros comprei barato. Quase de graça. Vento. Chicletes de troco. Revistas velhas. A sombra da mãe à janela imaginando a minha natureza e o que me levaria aos meus próprios limites. Aí a coisa já exigiu mais despesa. Eu teria de caprichar no ataúde para ela sofrer menos. Voltar a relacionar-me com amigos afastados pouco antes do último arremate para que as despedidas fossem concorridas e a mãe visse como foi amado o que por muito tempo guardara em suas mãos. Comprei perfumes caros para tornar o ambiente menos viciado em olhos inflamados e gânglios de desprezo. Uma bata discreta. Um cache-nez para o pescoço. No bilhete, recomendei horas ao sol de novecentos graus antes de descerem minha cápsula nos arredores da cidade. Há um certo frio em campos cultivados e espectadores. Prometi que voltaria se melhorasse. Daqui a um século, de um momento para o outro. Pena que não os veria jamais. Se pudesse escolher, procuraria um pardieiro bem mais distante de todos os seres que conheci cordialmente. Cerimônia concluída, passeio pela represa ali perto. Sem planos para o futuro. Me perco de vista. Agora sim, impenetrável corpo inteiro. Volátil. Arrebatado. Tudo grátis. E uma nuvem de poeira.