29.4.20

Quase tudo é tarde




A formiga 1 passou uma informação para a formiga 2 que não pude ouvir.

A praça está vazia. Não sei aonde foi parar todo mundo. 
Agrada-me. 
Posso ouvir melhor. 
O sol forte me conforta. 
Qualquer rua é a descoberta do mar. 
Abro braços e pernas e me entrego. 
O banco é só meu.

A essa altura a informação já chegou nos subterrâneos. 
Uma pequena equipe de formigas entra e sai do buraco. 
Elas diminuem a cada dia.

O mato toma conta da praça. 
Daqui a pouco não poderei ver o que fazem, escutar o que dizem. 
Será inútil gritar. Quase tudo é tarde. 
Ser sozinha também.

Luiza vai me dar um pedaço de sua raiva se eu não voltar com notícias da cidade.

Eu só saio de casa por amor.





Soberana




Uma de minhas comorbidades é essa teimosia antiga de perder tempo lendo autobiografias de celebridades mundiais das artes cênicas. Então, quando digo que a vida alheia não me interessa, isso pode ser uma meia-verdade, sendo que a verdade inteira que a recobre é que não me interessa mesmo um pepino. Cinema e teatro sempre me interessaram, tenho vários livros teóricos sobre o assunto, mas esticar até autobiografias em geral inúteis é meio doentio. Falo de autobiografias, aquelas em que todo mundo é santo. Você começa a ler e passadas umas 15 páginas já vê que daquela fruta só vai pular caroço. No entanto, às vezes me deparo com uma reminiscência aproveitável. Exemplo, fiquei sabendo que as vidraças dos prédios do Cais do Porto, na Praça Mauá, estavam quebradas há décadas muito antes de eu passar por lá pela primeira vez num ônibus a caminho do trabalho. Um dos meus vícios era namorar os gigantescos navios aportados, a sequência de armazéns decadentes fechados com seus bêbados ocasionais dormindo sob a marquise num dia de sol febril. As escolas públicas que frequentei também ficaram décadas com vidraças quebradas, não só quando eu estava lá dentro sendo torturada. Já adulta você passa na frente e dá aquela tristeza de que o tempo não virou a página. O passado está sólido e você ainda brinca de pique lá dentro. Daí, resolvo dar mais uma chance ao livro e continuo lendo até uma angústia tomar-me o esôfago com  tanta conversa oca. Não rasguei o livro porque era e-book. A tecnologia sempre nos tirando os pequenos prazeres da barbárie. Para curar-me desta ressaca tomo um Bloody Mary 500 ml de Sam Shepard e Roberto Arlt. O confinamento nos serve para imaginar uma nova nomenclatura ao calendário, mandando às favas Júlio César e Gregório XIII, astronomicamente incorretos. O mês 11 afinal não pode ser chamado de Novembro, e sim de Onzembro. Novembro deve ser o mês 9, passando Setembro a ser o antigo Julho. O mês 10 aí sim, é Dezembro, e não Outubro. O mês 12, Dozembro, e assim por diante. Talvez um dia eu abocanhe o prêmio Veuve Clicquot (garrafa Soberana de 25 litros) por meu empreendedorismo na “Nichtigkeit des Daseins”. 






25.4.20

Quero





Não se assustou quando abri a janela num rompante.
Ficou ali no fio, bico voltado para o céu,
virando a cabeça de um lado para o outro
como se quisesse bronzear a face uniformemente.
Durou o tempo de uma música.
Quando Where do the children play acabou,
partiu com os de sua espécie.

Depois do ensaio, conversei com Ingrid.
Falávamos em inglês,
em português ela só sabia dizer “quero”.
Os fãs pediam autógrafo,
eu pedi um beijo.
Ela deu.
Trememos.
Quando acabou, lamentou
a criação do Muro na Argentina.
Combinamos de nos encontrar mais tarde,
partiu e não nos vimos mais.

Eu voava sobre redes de vôlei cada vez mais altas.





20.4.20

17.4.20

Uma tarde no turfe






Pobre mas intelectual, não haveria no mundo razão mais pura que disfarçasse aquele olharzinho ganancioso que ele me deu quando eu disse que enfim o apresentaria a Luís Paulo. Luís Paulo era editor-chefe do único jornal de grande tiragem de nossa cidade e, coincidentemente, meu primo, o que não me trazia vantagem alguma, fiquem sabendo. Mas Pedro de Aquino não pensava assim. Não identificarei aqui o jornal e a cidade e vou avisando logo que quaisquer nomes citados são totalmente fictícios. Não quero que a esta altura da vida um cretino desavisado, quase sempre um conterrâneo, me apareça só para me desmentir quando não sabe da história nem a metade. Pois bem, digamos que Pedro de Aquino, pobre mas intelectual, nasceu na periferia do cu de onde-judas-perdeu-as-botas, que é a minha cidade. Mas onde-judas-perdeu-as-botas se julga próspera porque tem indústria autossustentada, universidade particular e imprensa escrita. Eu estudei em escola pública e depois arrumei um emprego na indústria autossustentada. Pedro de Aquino também estudou na escola pública mas conversou uma bolsa e foi para a universidade particular, de onde não mais saiu porque Pedro de Aquino é intelectual mas é pobre e precisa de arrimo acadêmico. Porém o salário de intelectual de Pedro de Aquino é baixo e ele precisa de outros bicos para, digamos assim, acompanhar os seus padrões. É onde entra Luís Paulo, meu primo editor-chefe. Luís Paulo e eu somos diferentes da água pro vinho porque ele além de rico também é intelectual enquanto eu estou pouco me lixando. Só que eu e Luís Paulo temos algo em comum que nos aproxima mais do que afasta: a paixão pelas corridas de cavalo. Antes de deixar claro que a nossa cidade também tem um hipódromo, eu preciso dizer que hoje acordei com o coração acelerado porque é dia de corrida e vou poder apostar na égua Maria-Mole que corre no..., vejamos, 3º páreo. Eu não preciso combinar nada com Luís Paulo, ele sabe que todo domingo vai me encontrar ao lado da pista estudando os cavalinhos. Depois seguimos para o bar e um encorpado intercâmbio de favoritos e azarões. E é lá onde nós estamos agora, no bar. Só que eu não sei que Pedro de Aquino sabe que Luís Paulo e eu somos viciados nos cavalos e batemos ponto no hipódromo. Cansado de ouvir as minhas desculpas e promessas de que assim que puder eu o apresento lógico a Luís Paulo, editor-chefe, meu primo, rico plus intelectual e viciado em cavalos blá-blá-blá, Pedro de Aquino resolve ele mesmo fazer as apresentações e parte pro hipódromo depois de engolir um almoço indigesto no trailer do campus. Eu aposto sempre e somente no vencedor, mas Luís Paulo gosta de cercar por todos os lados e, depois de cravar nos vencedores, derrama o resto da sua fé e do seu salário de editor-chefe em duplas, trifetas, quadrifetas e o prêmio especial do dia. E neste domingo não foi diferente. Como disse, estamos lá no bar, esperando o 3º páreo, onde apostei todas as minhas fichas na Maria-Mole. Minhas mãos estão suadas e mal conseguem segurar o copo. Luís Paulo palita os dentes e ri da minha teimosia com os azarões. Diz que eu não tenho critério, não tenho método, e que o amadorismo ainda vai me afundar. Eu afrouxo a língua e o mando tomar no cu. Estou de bom humor. Estico o pescoço e avisto Maria-Mole bufando no paddock. Ela vai conseguir. Os cavalos se encaminham para a largada e Luís Paulo e eu nos aproximamos da janela envidraçada para assistirmos à corrida dali mesmo. Com a tulipa na mão contemplo a pista de areia e logo acima um céu carregado. Não pode chover agora. Atrás de mim, Luís Paulo começa a falar qualquer coisa com algum conhecido mas meus olhos estão fixos na pista e nas nuvens, nas nuvens e na pista. Na largada, Maria-Mole puxa as rédeas, cabeceia, está nervosa. Meu corpo começa a tremer e o chope está quente. Nestes momentos eu nunca bebo nem converso. Preciso de concentração total para comunicar-me com o cavalo, para motivá-lo, este é o meu método, coisa que Luís Paulo jamais entenderia. Ele continua disperso e conversando atrás de mim. Não sei por que diz que gosta de cavalos. Ele apenas os usa para testar a sua técnica no cálculo das probabilidades. É um adepto do turfe de resultado. Eu não. Mas Luís Paulo é um intelectual e os intelectuais têm uma técnica toda própria de nos convencer que é sempre a técnica deles que prevalece. E falam demais também. Foi dada a largada e eu perco Maria-Mole de vista. Na pista a poeira levanta e só consigo acompanhar pelos alto-falantes do hipódromo. Luís Paulo não cala a boca e o tal sujeitinho que está com ele solta uns muxoxos. Maria-Mole faz a curva final depois dos 100 metros e vem correndo por fora. Minha blusa está molhada. Luís Paulo e o sujeito gargalham. Maria-Mole ganha a segunda posição e avança rapidamente para a primeira. Isso mesmo, menina. Você consegue. Aperto o bilhete na mão. Maria-Mole vai para o cabeça com cabeça, faltam 50 metros agora, o suor pinga no meu olho esquerdo e ela cruuuza a reta final. Eu sabia, eu sabia. Exultante, me viro para abraçar Luís Paulo, que não apostou na égua, e vejo o meu amigo pobre mas intelectual abraçando Luís Paulo. Você por aqui?, eu pergunto meio sem jeito mas sorrindo ainda. Pedro diz que sim sem abrir a boca e meu primo me parabeniza pela vitória, não sem antes me passar um sabão enquanto seguimos os três para os guichês. Porra, por que você não me disse que tinha um amigo da universidade precisando de trabalho? Eu estava justamente dizendo aqui pra ele que no momento não temos vaga no caderno de cultura, mas como ele conhece línguas mortas, eu poderia aproveitá-lo na redação de obituários, ahahah. Temos de valorizar os talentos locais, você não acha? Pego a minha bolada, amarfanho tudo no bolso de trás da calça e me despeço sem responder eu não acho nada, quem ganha pra achar são vocês, té mais ver.





16.4.20

A mariposa negra





A mariposa negra estava ali. Espanto-a da almofada e ela cai no chão sem um movimento. Nada tremula. Observo por um tempo. As lendas me vêm à cabeça. Esqueço. Pego um papel macio e a recolho. Não aperto. Levo para o lixo no banheiro. Fecho a tampa. Vou dormir com a tristeza das últimas mortes e o alívio de que os amigos estão bem. Volto a reler A era dourada de Gore Vidal, o último volume de sua série Narrativas do Império. O que este livro me importa exatamente neste momento, além de eu ser uma apaixonada pelo autor? Nada, penso hoje de manhã enquanto volto ao banheiro para dispensar o que meu corpo acumulou durante a noite. Lavo as mãos. Escovo os dentes. Saio pela porta que dá no quarto e antes que eu me afaste, ouço um barulho estranho. Paro. Tento localizar. Volto ao banheiro. O barulho vem do cesto de lixo. Então é o que lembro. A mariposa negra está viva e se debate lá dentro. Abro a tampa e ela alça voo, confusa. Saltitando pelo chão. Abro a outra porta que dá para o mundo e a conduzo gentilmente com o pé. Ela toma um impulso e suas asas a tiram dali na direção do céu. Está livre. E viva. O ar fresco da manhã bate em meu rosto. Sinto um arrepio de deslumbramento e neste preciso momento eu poderia ilustrar a cena com uma música da Ashram, “Il Mostro”. E chorar. As mariposas negras vêm de muito longe. De Manchester. O negro é da fuligem das fábricas. A revolução industrial lhes deu a camuflagem. Uma mariposa negra não se entrega com facilidade. É uma mutante e passou por muitas batalhas. Cruzou oceanos. E me encontrou para dizer isso. Eu não estava ali. Ela me esperou e dormiu de cansaço na almofada. Não acordou com meu tapa. Algo dentro dela esperou o amanhecer.  



14.4.20

13.4.20

Corcovado






Não estou um fiapo de manga interessada nas suas observações do confinamento, Eric. Já não bastam as festas ridículas que você dá na frente da minha casa com músicas do tempo do onça – o que já é uma expressão onça – e as gargalhadas cacarejantes dos seus convivas? Eu tenho de aturar esta merda e me concentrar o triplo para poder trabalhar aqui na minha mesa porque, ao contrário de você e tantos, eu não trabalho ouvindo música e dando olhadelas de lagarto na TV ligada. Deve ser por isso que cometo erros, eu vou ler depois de pronto e não gosto do que fiz, poderia ter caprichado mais apesar da porra do prazo que me dão. A culpa deve ser sua, Eric, dos cacarejos de seus amigos. Já pedi a minha avó para bloquear o seu nome no meu pc. Aliás, bloqueei tudo ontem, sites de notícias e redes sociais, para eu não ceder à tentação de ficar fuçando por esses lás. Não vou adoecer-me por antecipação. Aqui em casa já cheira a al-anbiq. Se chegar a minha hora, chegou a minha hora. Simples. E foi como descarregar o Corcovado das minhas costas, sabe. “Você quer viver numa bolha ainda maior.” E o que é que tu tem com isso? Tá fazendo o quê aqui? Notou o acento no Q? É pra você, paspalho. Depois do megavírus, tudo mudou no mundo, você devia tentar. Eu mudei, já fiz a transição. Que é: pouco me foder pro que escrevo. Tirei a máscara. Estou na beira do abismo e lá embaixo é bem bonito, veja só. Cada passo que dou à frente é uma nota na minha música. E o vento a premir folhas e cordas. As pontas ensanguentadas dos meus dedos. Respiro fundo porque ainda posso. É uma sensação inigualável. O ar dando a volta inteira dentro do meu corpo. Quem respira desatento não sabe o que isso significa, como é grandioso e belo. Mais do que qualquer animal ou obra criada pelo homem. Respirar é maior do que Deus. Quando eu parar, Ele morre.







11.4.20

De um ano dourado




Fomos na Urca pegar uns livros, daí ela filmou.
Acho que foi 2015. 
O país ainda não estava totalmente insano, mas chegando lá.
Almoçamos, tropecei no degrau, fui ao chão.
O cargueiro foi embora e não nos levou.
Foi um dia mais do que o feliz.








1.4.20

Parerga e paralipomena




O interior metafísico. 



Este entra-e-sai dos Infernos.