28.6.18

QBoa






E se eu quiser sair da jaula do outono já na primavera? Tomei uma caixa inteira de diazepam veterinário com uma quartilha de água sanitária QBoa. Só o que senti foi leve sonolência e uma baita dor de estômago. Para amenizar a forte azia, comi um côvado de bolo de chocolate meio dormindo meio acordando. O médico disse que foi o bolo que me salvou. Há farinhas milagrosas. Perguntei a ele o que me fez mal de fato, se a QBoa ou o diazepam vet. Não soube responder. Ou não quis. Ficou balançando a cabeça com um sorrisinho irônico na boca torta. Burro. Eu disse a ele que se não me respondesse, eu não pagaria a consulta. Que consulta? Isso aqui é a emergência de um hospital público. Não satisfeito com o quod erat demonstrandum de sua burrice, ainda atira minhas misérias na minha cara. Ninguém salva a vida de ninguém de graça. Essa conta iria chegar. Ele não deve é saber no que se transforma a fusão de hipoclorito de sódio com GABA que de nada serviu aos meus propósitos. E ainda pôs a culpa no bolo, o infeliz do bolo que era só para aliviar o estômago mas resolveu se meter em problemas que não lhe diziam respeito salvando a minha vida. "Farinhas milagrosas." É para isso que servem os cursos de medicina. Meu ódio e frustração foram tantos que meu desejo de dar cabo dessa existência morreu antes de mim. Transformou-se em um impulso repentino e generalizador de vingança. Contra os fabricantes do bolo, da QBoa e do calmante veterinário. No entanto, pensando bem três meses depois de planos mirabolantes de homicídio em massa, eu não iria me descabelar por ruas e becos escuros atrás de ninguém. Risquei mentalmente minha fórmula capenga e pesquisei outras antipanaceias. Nada de armas, afogamentos, forcas ou prédios altos. Eu daria trabalho ao Dr. Farinha. Deixei seu nome e endereço na cabeceira com instruções expressas a amigos zelosos e enxeridos. Estava louca para ouvir seus próximos diagnósticos inteligentes, mesmo que porventura impossibilitada por uma colateral surdez tóxica. Teríamos de gritar um com o outro. Seria um frêmito divertido. Mamãe tinha dolorosa paixão por óperas.  









22.6.18

Meu país é a minha cabeça




Meu país é a minha cabeça. 
Porque ela tem acessos de tosse humilhantes dentro de vagões 
preciso descer a cada estação para dar-lhes vazão e chegar ao seu destino.







20.6.18

Augustibluus





Nós duas juntas, duas vielas arborizadas lado a lado em Haapsalu.
Dois leitos imbricados sombreados pelo dr. Krusenstiern.

Nossos bancos de mármore somos notas musicais.





18.6.18

Repoema

  1. Há dentro de mim uma paisagem 
    entre meio-dia e duas horas da tarde. 
    Meu coração bate desamparado 
    onde minhas pernas se juntam. 
    Uma noite me dei conta de que possuía uma história 
    e de que era monótona com sua fieira de lábios, narizes, 
    modos de voz e gesto repetindo-se. 
    O que existe são coisas, não palavras. 
    Granito, lápide, crepe 
    nuvem, saudades, lembranças. 
    Em todo enterro choro com um olho só, 
    com o outro acho coisas no meu sonho: 
    os toquinhos de vela crepitam e morrem. 
    Quando eu sofria dos nervos 
    fiz curso de filosofia pra escovar o pensamento, 
    não valeu. 
    De dentro da geometria 
    Deus me olha e me causa terror. 
    As formigas passeiam na parede, sobre 
    a cômoda, num quarto 
    Elas querem me matar, me comer, me cagar. 
    Eu sei escrever. 
    Escrevo cartas, bilhetes, listas de compras 
    Assim escrevo: tarde. Não a palavra. 
    A coisa. 

    [Repoema que fiz a partir de versos isolados de várias poesias de Adélia Prado publicadas em seu Poesias reunidas.]



De quem sabe o que quer





Jogo um pouco de água no rosto.
Escorre pela folha central.
Uma perfeição.
Esta flor branca em minha pele é a lepra
de quem sabe o que quer.




15.6.18

O meu erro





Não me excitam as de unhas compridas.
Nunca.

Sei que a qualquer momento
vão raspar outra vez no meu caderno
a maior delas para sublinhar o meu erro.

Eu me levanto e 
entro. 
A quinta-feira
mora perto.
Não há testemunhas.





2.6.18

Gertrude






When you get Gertrude there, 
there is no there, there.


 






1.6.18

Paraísos artificiais a seco











Sobrou alguma coisa para morrer? 
Quando é que as pessoas não falam de si mesmas? Soube que inventaram até umas redes para ficarem falando ainda mais e mais à distância, sem que ninguém lhes perguntasse porra nenhuma, que inferno. Milhares de rostos banais num só dia rebocados por um caminhão guincho sem freios. Por que não param agora e vão dormir? Idiotas do caralho. Aqui onde estou é a mesma merda. Pior, não tem vinho nem hipódromo. São paraísos artificiais a seco. Parece uma sala. O ventre leitoso de uma aranha. Parece um poeta vazio. Uma nota de 20 dólares. Um clipe de papel. Nada sobrou para me comerem. Minha alma é de algodão e unha do pé. 




(mensagem do velho Buk que psicografei entre uma dose e outra de Benadryl)