27.10.18

23.10.18

Dindi


A realidade é que sem ela não há paz, não há beleza, é só tristeza e a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai. Eram quase duas da manhã quando pisei no Arpège, lotado aquela noite. Tom Jobim, todo muito sincopado, espremendo do piano queixas de amor com uma nova batida que o público não entende, só se balança. Pra mim aquela bossa não dizia nada, nada que Cole Porter já não tivesse dito, e melhor. Peço um White Horse duplo, sem gelo, e fico por ali em suspenso, fumando e assobiando baixinho De cigarro em cigarro, do Bonfá. De cinco em cinco minutos meu olhar se despeja nas mesas, procurando Dindi. Encostado na parede ao meu lado, um sujeito lê no Correio da Manhã a inauguração da nova capital federal. Na luz fraca da boate vejo a foto daquela cidade de sonho talhada no deserto. Um chapadão de arquitetura arrevesada e megalomaníaca para assustar e afastar a calangada revoltada dos centros de decisão. Mas se ela voltar, se ela voltar que coisa linda, que coisa louca, pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os Vejo o corpo de Silvinha cruzando a fumaça e meu coração acelera. Silvinha chegando é só encantamento. Não precisa de música. Ela senta à minha mesa sem tirar os olhos do piano, a mão suada apertando a minha. Silvinha não sabe que amanhã vou para Brasília e nunca mais nos veremos. Foi assim que combinamos, desde o início. O fim não seria anunciado. Ela marca o meu copo de batom e antes de sairmos dali apaga um último cigarro no cinzeiro de cristal.



(2004)



Sintra


Como uma broa de Sintra. 
Solto um peidinho primaveril.

Diga a todos que batem à minha porta –
Ela está tuberculosa
Não pode ver ninguém
É contagiosa
Uma hora passa.
Bonita tarde.

O meu ódio é uma flor que se esforça.



21.10.18

Vício




No elevador, no teatro, abaixo-assinada.

Tarada.

Vício de rir por nada.

Lambe a mão de poetas suadas. 








16.10.18

Entre um poema e outro









Quando leio um livro. 

No espaço entre um poema e outro 

paro e penso -- 

Aqui a poeta foi comer um suculento bife à milanesa. 













9.10.18

A pound of flesh




Fim de festa. Juntou seus vinis, guardou e saiu com o peso nas costas.
O ponto de ônibus estava cheio dessas pessoas que chegam aos poucos.
Ninguém me ofereceu nem um maldito sanduíche, só cerveja quente.
Pagaram adiantado, em cheque preenchido com caneta tinteiro azul.
Pôs o cheque dobrado no bolso de trás da calça jeans.
Subiu e sentou no último banco. Os vinis no colo.
O relógio luminoso da estação de trem marcava 4:10.
Em casa a mãe ainda estava sonhando.
Você é o único culpado. Eu sei que é assim.
O melhor seria uma máquina de lavar.
O ônibus aumentou a velocidade.
Colocou os vinis ao lado da cama em silêncio.
A noite deitada.
Na cozinha panelas limpas e vazias sobre o fogão.
A geladeira aberta, viu garrafas d'água, cebolas ressecadas,
manteiga rançosa, batatas moles, massa de tomate mofada.
Abriu o saco de pão e pegou duas fatias.
Comeu encostado na parede iluminada pela rua.
Puxou o cheque do bolso e ele esfarelou em sua mão.
Molhado de suor.
Sentiu uma mordida no fígado.
Olhou pela janela ainda mastigando.
A mulher de cabeça baixa fumava no ponto.
Os ombros simétricos inclinados para a frente.
Rasgou o cigarro com o bico do sapato quando o bonde parou.
Amanhã ele ia pintar o portão.


5.10.18

A écharpe


O seu dinheiro? 
Prefiro esmolar nas escadarias desembainhadas do catolicismo.
Acolegar-me com putas sonâmbulas da rue de la Reynie. 
Acidentar-me fatalmente.
E ao me encontrar.
Guarde a écharpe.
Limpe o meu rosto.
Um último brilho passará rápido por baixo de meus olhos fechados
levando embora seus próprios pensamentos com a luz do poste.
Porque me pesa de os ter feito.
Você jogará terra, flores, vagalumes.
Na largueza e soltura da vida  
A cabeça fica para que lado?