Oui es rhyme the great pretender
Quatrocentos e oitenta ovócitos descartados, o corpo dela não gerou uma cidade, um show de música, uma sessão de cinema, uma linha de montagem, uma partida de futebol, uma guerrilha urbana, uma universidade, uma regata de veleiros, um aviário industrial, uma orquestra sinfônica, um avião de carreira, um conflito étnico, uma corrida de obstáculos, uma fila de apostas, um Minotaur HMS encalhado.
Quatrocentos e oitenta ovócitos dolorosa e naturalmente excretados, o corpo dela não gerou uma viva alma, um zoon inteiro, um zoon pela metade. Se anoitece, repousa no travesseiro os hemisférios cansados do rosto sentir-com, sentir-dentro. Eu desligo a luminária, guardo A ilha do tesouro e deixo sua cidade sem balbuciar.
Ana mergulhava no Posto 6.
Águas tranquilas, quase mortas. Sujas. Mas havia barcos na areia. Sol fraco. Amendoeiras. Velhos jogando vôlei ou damas nas mesas de concreto. Eu mergulhava no Posto 1. Onde o mar simula ser calmo. Sol no zênite. Se ondas devoram o Caminho dos Pescadores, só sobram corpos e a pedra. Vi Ana na casa de Heloísa. Olhei-a de relance. Sentada no sofá. Óculos escuros. Cabeça baixa. Como se fosse mergulhar no próprio peito. A professora nos conduziu para seu escritório. Combinamos rapidamente algo sobre poesia e fomos embora. Ana no sofá. De soslaio. Uma amiga em comum convidou-me para o lançamento de Ana num bar. Eu fui. Ana autografando. Eu bebendo. Tão longe. Não comprei o livro. Não lembro. A mesa. Soube de sua morte no domingo, na manhã depois do acontecido. Alguém me ligou. Eu estava no Posto 5. Seca.
Depois de Alepo
Aprendi a ler cedo.
Mas a verdade é que às vezes eu gostaria que as letras continuassem sendo desenhos estranhos por mais tempo, antes que as palavras impusessem sua tirania, antes que outras línguas fizessem da minha boca ingente o seu lar.
Não o digo literalmente.
Um dia você disse, Vamos voltar para Alepo.
Não literalmente.
Habib, há quatro anos gritávamos por mudanças e agora somos cidadãos fronteiriços.
Vamos da Turquia ao Líbano, ao Egito, mas não encontramos Alepo.
Temos vale-alimentação, critérios assistenciais e esporádica empatia.
Não escrevo mais poesia.
O barco está afundando,
literalmente,
mas não quero abandoná-lo.
Ele tem cheiro de jasmim e você, sabor de liberdade.
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Jehan Bseiso é uma poeta, contista e pesquisadora palestina voltada para o tema dos refugiados de guerra. Trabalha no Médicos Sem Fronteiras desde 2008 em países como Afeganistão, Paquistão, Iraque, Etiópia, entre outros. Atualmente é diretora do MSF-Líbano. Trad. Maira Parula, 2022.
No fim é a infância que volta.
Ela já sabe.
Músicas. Ambientes.
Whisky J&B.
Cigarros Kent.
Helenas. Heloísas. Lauras.
Pelo fio do telefone preto.
O vocabulário primal.
Vozes adultas graves.
A cabeça no colo da tia preferida
abafa os gritos de Aída Curi na praia.
O retrato de Dorian Gray
asfixiado na areia da sala.
Hoje foge de vozes adultas infantis.
Compra um sol.
Deita no chão.
Não fica lembrando de coisas.
Sabe perder.
Words sleep in thy head all night
&
in daytime escape from
thine ears touching thy hands
o so softly
like belles-lettres lice.
Enfim chego nos Agradecimentos. A melhor parte da história. Minha pena bebe água de meio-fio. Esta ilha não tem mais conchas. Há medo de se passear sob as árvores. As mulheres abandonam seus cavalos na praia por sombras de escritórios. Um besouro esvaído me olha sob a luz seca da mesa. Seus minúsculos olhos pretos, o tamanho de um ponto final. Seus minúsculos olhos pretos brilham. Piscam para mim como alguém que sabe separar a música do instrumento que a toca. Morrem um minuto depois da Nota da Autora:
"Estou atropelando coisas para poder te ver. Não importa. É maior."
Corto a sentença. Não importa mais.
Hoje amo olhinhos de besouros.
São menores.