29.7.13

Joseph Brodsky





Carta a um arqueologista


Cidadão, inimigo, filhinho da mamãe, idiota, lixo
total, mendigo, porco, refujudeu, verrucht;
um escalpo tantas vezes escaldado com água fervente
que o débil cérebro parece completamente cozido.
Sim, vivíamos aqui: nestes escombros de concreto,
tijolo e madeira que você agora chega para peneirar.
Nossos fios foram todos cruzados, eletrificados, enrolados, trançados.
Não amávamos nossas mulheres, mas elas nos deram filhos.
Agudo é o som da picareta que fere o ferro morto;
porém é mais suave que o que nos disseram ou nós mesmos contamos.
Estrangeiro! tenha cuidado ao andar entre nossa carniça:
o que lhe parece carniça é liberdade para nossas células.
Deixe nossos nomes em paz. Não reconstrua essas vogais,
consoantes, o que o valha: elas jamais parecerão cotovias
mas a goela de um cão raivoso a devorar
o próprio rastro e fezes latindo sem parar.


(trad. livre MP, 2013)




26.7.13

Perfil




Trouble Jr. Olha ele lá, debruçado no portão. 
Calculando latitude e longitude dos seus dias que o querem aqui. 
Baixa a cabeça e limpa no friso das botas o branco do seu destino. 
É assim Trouble Jr. 
Ninguém sabe de onde veio. 
Pediu trabalho. 
E quando um homem fica louco, não tem mais nome. 
É Trouble Jr. 
Ninguém perguntou por quê. 
A sela do cavalo corroída pelo sol 
é como se desmanchasse o cavaleiro. 
Todo dia a esta hora eu o vejo debruçado no portão 
e penso nos meus dias que o querem aqui. 
Todo mundo sabe de onde eu vim.
Pedi trabalho. 
E quando uma mulher enlouquece, não tem mais nome. 
Trouble Jr. e sua carne quente. A terra vista de perfil. 




23.7.13

18.7.13

14.7.13

Poemas de Guillermo Boido




Amém

despoja-me do teu rosto

não permitas
a servidão
estéril da memória


Primeiro amor

e tanto te esqueci que nunca exististes:
sonhei contigo como o vento sonha com pássaros


Disjunções

o real é uma corda esperando ser esticada
de vazio em vazio como uma teia de aranha

o acaso é a luz que alimenta toda coisa
se nada é sombra se tudo é cego


Cópula

e a esta praia mútua
faremos crer que
perdura nosso rastro e que
o semeador de marés
dorme


Pulso

setenta
vezes
por
minuto
o
sangue
chama

mas não respondo


Conversas com Tola

há um poema não escrito
por trás de todo poema
porque
todo poema é apenas
a impotência de um poema
donde
toda palavra é morada
de abismo muro ou oblívio
e este
poema que escrevo sobre
aquele poema não escrito
mente
pois só evoca nomes
que me nomeiem
quando
enfim encontra o silêncio
enfim o silêncio é



Credo

não vi a ressurreição da carne
vi sim como um homem pode
entre os dentes da dor da fome do látego
tornar-se alimento de sua própria carne
até alcançar o tamanho dos mortos



A espera

E estar aqui como o vento.




(La oscuridad del alba, Poemas 1970-2005, Ediciones Virgilio, Buenos Aires, 2006.
Tradução Maira Parula, 2013.)



12.7.13

10.7.13

De 1 azul


O poema é um nó do vento
que no meio da rua a menina
e o cão contornam sem pressa. 
De uma varanda  o velho observa
os carros subindo e descendo 
a ondulação acima da mão.
O velho já não enxerga direito
se o vestido branco manchado
é a orelha do cachorro
ou um barco a galope
num rolo de fumaça,
se é um vilarejo a noite de faróis
que acordam a fachada das casinhas
ou um deserto de cavalos
a poeira que levantam.
O rio escorre às suas costas
de um azul em que nada acontece.