4.9.08

Eu estava ali e vi tudo com os teus próprios olhos azuis





Cadáver em decomposição, semicarbonizado, espostejado. Ele era um soldado e chegou sozinho. Vi quando se aproximou de mim a passos lentos e bem marcados. Suas botas enlameadas deixando máculas no piso da sala de necropsia. O uniforme militar rasgado e sujo de terra, origem desconhecida. Eu acabara de examinar um dos vinte corpos que chegaram naquela tarde e repassava mentalmente as conclusões que colocaria no laudo. Não se podia deixar escapar um detalhe em casos de morte violenta. Eu me formara há poucos meses em patologia forense e ainda não me habituara às exigências burocráticas do trabalho. Tirei meu avental de borracha e ergui os olhos. O homem olhava fixamente para a serra de ossos na mesa de instrumentos. Refez o meu rastro e descobriu a calota craniana aberta na minha frente. Não consegui determinar a cor exata dos seus olhos. Aquele corpo também não poderia seguir para a universidade. As peças maceradas não serviriam para as aulas práticas. Talvez com um tratamento eu pudesse encaminhar o encéfalo.

Bom trabalho, doutora.
Ainda não acabei, falta a parte mais chata.
O que causou a morte?
O homem foi metralhado e carbonizado.
Não foi envenenado antes disso?
Não vi sinais de envenenamento.
Não dá para consertar?
Consertar?
É, costurar tudo, juntar os pedaços, cobrir os buracos, limpar as cinzas.
Impossível. A matéria é inconsistente. Desmancha nas mãos.
Você é médica. Nada é impossível para os médicos.
Ah, é sim. Não sou Deus. E por que o faria? Quem é você?
Eu preciso deste corpo. Você vai recompor tudo agora.
Ele está destruído. Não serve nem para estudo.
Mas vai servir para mim. Faça o que puder, eu espero.
Preciso de uma ordem por escrito e assinada por autoridade competente.

Ele me entregou um papel amassado que tirou do bolso do uniforme. Reconheci o timbre do exército. Assinado pelo general Weizman. Data: 27 de setembro de 1943. O que está acontecendo aqui? Ele ouviu meu pensamento e sua voz de comando insistiu, me apontando uma Mauser enferrujada. Conserte o corpo agora, preciso dele, já disse. Não me faça esperar mais do que pretendo. Vou ficar aqui, perto da janela. Sem atrapalhar. Consultei o relógio, 8:15 da noite. Eu estava me sentindo fraca de fome, mas não conseguiria comer nada, eu sabia. Ele ficou de pé o tempo todo ao lado da janela, olhando para mim, para os instrumentos, acompanhando meus movimentos. Eu não ouvia mais sua respiração, sua voz. Só os tiros lá fora. Quando o relógio assinalou 2h da manhã, eu desisti.

Não consigo fazer melhor do que isto. Vou desmaiar se não parar.
Bom trabalho, doutora.

Ele se aproximou da mesa e tocou com carinho a mão reconstituída. Crânio, tórax e abdômen fechados. As peças do seu corpo encaixadas novamente. Tire uma foto de nós dois, ele disse. Saí do laboratório de patologia às 3 da manhã, corredores vazios, ruas vazias. Cheguei em casa e me joguei na cama depois de tomar um copo de leite gelado. Acendi um cigarro. Ainda podia ouvir os tiros lá fora. Na manhã seguinte acordei virada para a foto no porta-retrato da cabeceira. Os olhos eram azuis. “Obrigado, doutora.”