25.9.08

Por que matei Roberto Carlos




Nem tudo que acontece na cadeia são mortes, rebeliões e colchões queimados. Bom, nem quase tudo. Para evitar a surpresa de ser um número a mais nas estatísticas, prefiro dormir de olhos bem abertos e barriga para cima, só assim poderei ver o focinho do meu provável assassino. Um assassino não muito diferente de mim, que peguei uma pena de 29 anos por matar Roberto Carlos. Estou trancafiada neste lixo com a escória da humanidade já há nove anos e nem sei como tudo começou e aonde vai parar. Não adiantaria me arrepender agora, remorsos não aceleram o tempo para me tirar daqui, nem trazem os mortos de volta, o que seria a última coisa que eu desejaria na minha vida, principalmente o morto que em boa hora decidi matar. Há nove anos que acendo o meu primeiro cigarro da manhã pensando em por que tive de matá-lo. E no que errei para ser presa horas depois e me ver numa situação dessas. Que importância tinha para mim vê-lo morto? É certo que hoje vivo em paz por saber que ele apodrece cada dia um pouco mais debaixo da terra. Mas também qual a importância de me ver aqui dentro viva e apodrecendo da mesma forma? Quando o cigarro acaba, estas perguntas saem com a fumaça pela janela. Talvez nada tenha importância na verdade e o que vale mesmo é estar ainda com o que me resta dos pulmões para acender mais cigarros e pensar no crime que cometi naquela noite de sexta-feira de 1999.

O 17 de dezembro de 1999 foi um dia útil da semana como outro qualquer e, como todo dia útil, pouco importa se chove ou faz sol. Eu estava desempregada e acordaria de ressaca do mesmo jeito naquele muquifo em que morava de favor na rua Conde de Lages. Eu nem precisava temer oficiais de justiça ou senhorios furiosos chutando a minha porta, pois o conjugado era de um coronel de minha única irmã e eles costumavam usá-lo para se encontrar toda quarta-feira. Eu só tinha de liberar o lugar nesse dia, no resto da semana podia me encostar por lá sem precisar me preocupar com fila de banco todo dia 5 e ordens de despejo. Enquanto minha irmã estivesse nas graças do sujeito, eu podia relaxar, o que fazia sem constrangimento pois esse patrocínio já durava alguns anos. Minha irmã sabia conquistar um homem, isso a filha-da-puta sabia. Quando estava de bom humor e duas doses acima, me confidenciava sua principal técnica: poucas perguntas e um ippon de buça, eles não resistiam. Nós gargalhávamos e no silêncio que se seguia eu ficava pensando que ela não precisava usar de tanta modéstia comigo, porque eu sabia que era bem mais do que isso. Inteligente, apesar de formada em educação física e com um emprego de gerente numa próspera academia do Leblon, era bonita e atraente o bastante para ter um marido pra chamar de seu, só que ela preferia chamar o das outras. Provavelmente era entre uma esteira e outra que fisgava os trouxas que acabariam se apaixonando por ela. Eu não podia condená-los, era impossível ser indiferente àqueles olhos tristes e negros de Elisa, a amante de Roberto Carlos.

Elisa é mais velha do que eu uns dez anos ou mais, não me lembro bem, pois desde que fui presa não penso em aniversários, feriados, efemérides. Mas o que quero dizer é que, por ser mais velha, ela traz consigo uma memória residual daquilo que se convencionou chamar de Jovem Guarda. E quando o sujeito se inscreveu na academia dizendo chamar-se Roberto Carlos e dias depois sussurrou para ela uns versinhos do “Broto do Jacaré” enquanto trabalhava os glúteos, sua associação afetiva foi instantânea. Ela caiu de amores pelo seu Rei da Juventude, um empresário rico e setentão, alto e barrigudo, com a cara do Erasmo.

Lembro até hoje do dia em que ela me contou, pois rimos de engasgar com o café que estávamos tomando na cafeteria da academia. Como eu babava para saber detalhes do Rei, Elisa abriu a carteira e mostrou-me uma foto dele com a família, o que achei meio humilhante, embora ela não se importasse. Talvez sentisse um prazer íntimo com aquela disputa. Nunca o conheci pessoalmente, mas conhecia o cheiro que ele deixava no apartamento e nos lençóis em que eu dormia ao chegar trôpega tarde da noite toda quarta-feira. “Mas ele é a cara do Erasmo”, eu disse e minha irmã rebateu, fechando o sorriso. “Nem toque nesse assunto, ele odeia quando dizem isso.” Eu fiquei intrigada e ela não deu explicações. Meses depois eu fiquei desempregada, fui despejada e ela disse que eu poderia ficar na “garçonnière” deles enquanto não arrumasse outro lugar. No momento em que ouvi esta palavra, percebi em minha irmã os primeiros sintomas da nostalgia psíquica que começava a dominá-la. Como se de um dia para o outro, ela passou a usar palavras e expressões antigas, como “nota preta”, “boa-pinta”, “podes crer”, “pra frente”, “eutôquetô”, “bafafá”, “manda brasa”, “champanhota” e outras estranhices que eu precisaria de intérprete. Fez uma revolução em seu guarda-roupa e começou a usar tubinhos variados com botas de cano longo brancas, cílios postiços, laquê no cabelo armado, coroando tudo com fartas doses de Chanel n.5. Comecei a temer de que um dia ela perdesse o emprego. Mas os clientes da academia não se importaram com a extravagância, pelo contrário, diziam que ela era uma festa temática ambulante e tudo acabava em risos, bem tolerados por Elisa. Nunca toquei no assunto dos motivos de sua repentina mudança, Elisa se distanciara de mim e não trocávamos mais confidências, nem quando bebíamos. Até o dia em que, morando fazia algum tempo naquela garçonnière da Lapa, encontrei na gaveta do criado-mudo um Taurus, calibre 32. Sem saber o que pensar, na mesma hora telefonei para Elisa e interpelei-a, as mãos tremendo e suando agarradas ao fone. “Por que você guarda a porra de um revólver neste apartamento?” Ela então baixou o tom de voz e pude ver seus olhos assustados perscrutando ouvidos a sua volta. “Não é meu. É do Roberto.” E com um discurso entrecortado pelos bons-dias e como-vais que distribuía aos clientes do outro lado da linha, teceu uma fileira de justificativas à minha pergunta. Que a nossa vizinhança era barra-pesada, que Roberto temia que aqueles favelados os assaltassem e invadissem o apartamento, que a portaria do prédio virou uma “chacrinha” de pederastas, que ele estava pensando em vender aquele apartamento até porque não suportava mais encontrar-se com ela num lugar sujo e sebento que eu não me dava o trabalho de limpar para recebê-los, afinal de contas ele tivera a condescendência de me deixar morar lá de graça sem mesmo me conhecer, era uma boa alma enquanto eu, sem a menor preocupação de dar um jeito na minha vida, só pensava em provocá-lo com aqueles discos do Erasmo espalhados pela cama toda vez que chegavam lá, as fotos de Erasmo que colei na porta do banheiro, eu era uma mal-agradecida, uma debochada, e ele pensava em ter uma séria conversa comigo hoje mesmo. Elisa não viu as minhas lágrimas enquanto se despejava pelo fio do telefone. Eu desliguei sem uma despedida e recoloquei o Taurus na gaveta. Minha irmã estava dominada. Minha única irmã. Pensei em nossa mãe morta e entristecida com suas filhas tão desunidas. Elisa, que trançava meus cabelos e me protegia do bicho-papão nas noites em que nossa mãe se ausentava. Que cantava baixinho no escuro, afastando os espíritos que falavam pelas paredes de nosso quarto para que eu pudesse dormir. E agora minha irmã era a presa de um obsessor. Um Roberto encarnado em Erasmo. Minha irmã no centro deste império dividido. Sem coroa de rainha. Sem súditos. Sem herdeiros. Minha carne e meu sangue. Baixei a agulha da vitrola e me deitei em seu leito macio. Toda pedra no caminho, você deve retirar, numa flor que tem espinhos, você pode se arranhar. Se o bem e o mal existem, você pode escolher. É preciso saber viver.