São dez horas da manhã de uma noite maldormida quando decido testar os novos pneus Protek Max da bicicleta. Eu vou precisar deles para cumprir a missão que me foi destinada. Chove e a rua de terra batida está escorregadia, o que não me impede de rodar maciamente até a pista de asfalto e dali descer a Estrada do Sumidouro na direção da Varick Street, onde ouvi dizer que há inúmeras tipografias antigas ainda em funcionamento. Sinto nas curvas o cheiro de chumbo das Mergenthalers, seu ruído ensurdecedor, e meus pelos arrepiam de prazer como na primeira vez. Mas não freio e logo à frente viro à esquerda, costurando entre carros apressados até o início da Pont du Gard tão ensolarada que depois de tudo não vou querer pensar em sol por um mês, colocando tudo no papel. Os pneus novos resistem bem às trilhas de lama antes de cruzarem a Smolenskaia os músculos de minhas pernas começam a pedir arrego. Na Bab Agnaou diminuo a velocidade, seco o rosto e desligo o iPod. Faltam ainda quarenta minutos para eu chegar ao meu limite, o alvo preciso. Ouvir Impromptus não ajuda muito. Não retornarei pela Diego de Ordás pois minha cabeça já está formigando e em algum lugar deve haver um atalho da Calle Lima à Tamarineira. Quanto mais pedalo menor é a vontade de me mudar para cá. Por onde passo todas as pessoas parecem querer ir para algum lugar, dar em alguma coisa. E somem no vapor. Aponto para Quakers Hill e estou subindo novamente enquanto a paisagem. Tomo meu primeiro gole de gatorade na Via Amalfi, de frente para o mar de limoncello. Penso em parar no Duomo di Lucca para visitar o retrato do meu avô materno na carteira, mas a mãe do meu pai, com ciúme prussiano, lembra que a sua Pommern foi engolfada pelo Báltico da segunda guerra e eu não conseguiria mais passar por ali, nem que fosse um Spitz sem plumas. Até agora não consegui fugir da civilização para usá-la como estante de livros. Só os nomes vão mudando. Um Toyota FJ Cruiser passa raspando por mim e sou obrigada a avançar por um matagal, trombando numa árvore. A joelheira direita se foi. Estou perdendo a concentração. O oxigênio. Mão direita ou mão esquerda enrijecem no guidom. Estou perto agora de Matamoros. Consulto o monitor cardíaco. Buracos e pedras. Ele é tão simpático comigo. Mas a verdade é que me sinto febril quando saio da Avenida Amazonas, entro na BR-040 e me restam cinco minutos para o fim. É muito difícil ser uma pessoa com quem não consigo falar. Evitar correntes secas quando uma gota por elo basta. Obrigar-me fisicamente a lançar mão da chave multiusos para o desânimo num trecho comprido de águas rasas. Na porta de casa vejo que os pneus se regeneraram sozinhos. Perco toda a noção de tempo e distância quando finalmente tiro a venda dos olhos e guardo a ergométrica na garagem antes que me chamem para o almoço.
28.4.11
Dream fitness
São dez horas da manhã de uma noite maldormida quando decido testar os novos pneus Protek Max da bicicleta. Eu vou precisar deles para cumprir a missão que me foi destinada. Chove e a rua de terra batida está escorregadia, o que não me impede de rodar maciamente até a pista de asfalto e dali descer a Estrada do Sumidouro na direção da Varick Street, onde ouvi dizer que há inúmeras tipografias antigas ainda em funcionamento. Sinto nas curvas o cheiro de chumbo das Mergenthalers, seu ruído ensurdecedor, e meus pelos arrepiam de prazer como na primeira vez. Mas não freio e logo à frente viro à esquerda, costurando entre carros apressados até o início da Pont du Gard tão ensolarada que depois de tudo não vou querer pensar em sol por um mês, colocando tudo no papel. Os pneus novos resistem bem às trilhas de lama antes de cruzarem a Smolenskaia os músculos de minhas pernas começam a pedir arrego. Na Bab Agnaou diminuo a velocidade, seco o rosto e desligo o iPod. Faltam ainda quarenta minutos para eu chegar ao meu limite, o alvo preciso. Ouvir Impromptus não ajuda muito. Não retornarei pela Diego de Ordás pois minha cabeça já está formigando e em algum lugar deve haver um atalho da Calle Lima à Tamarineira. Quanto mais pedalo menor é a vontade de me mudar para cá. Por onde passo todas as pessoas parecem querer ir para algum lugar, dar em alguma coisa. E somem no vapor. Aponto para Quakers Hill e estou subindo novamente enquanto a paisagem. Tomo meu primeiro gole de gatorade na Via Amalfi, de frente para o mar de limoncello. Penso em parar no Duomo di Lucca para visitar o retrato do meu avô materno na carteira, mas a mãe do meu pai, com ciúme prussiano, lembra que a sua Pommern foi engolfada pelo Báltico da segunda guerra e eu não conseguiria mais passar por ali, nem que fosse um Spitz sem plumas. Até agora não consegui fugir da civilização para usá-la como estante de livros. Só os nomes vão mudando. Um Toyota FJ Cruiser passa raspando por mim e sou obrigada a avançar por um matagal, trombando numa árvore. A joelheira direita se foi. Estou perdendo a concentração. O oxigênio. Mão direita ou mão esquerda enrijecem no guidom. Estou perto agora de Matamoros. Consulto o monitor cardíaco. Buracos e pedras. Ele é tão simpático comigo. Mas a verdade é que me sinto febril quando saio da Avenida Amazonas, entro na BR-040 e me restam cinco minutos para o fim. É muito difícil ser uma pessoa com quem não consigo falar. Evitar correntes secas quando uma gota por elo basta. Obrigar-me fisicamente a lançar mão da chave multiusos para o desânimo num trecho comprido de águas rasas. Na porta de casa vejo que os pneus se regeneraram sozinhos. Perco toda a noção de tempo e distância quando finalmente tiro a venda dos olhos e guardo a ergométrica na garagem antes que me chamem para o almoço.
25.4.11
Shaken, not stirred
A senhorita Bishop detesta poemas confessionais. Confessou isso numa folha fedorenta de jornal. Palavra por palavra por palavra. Clavicórdia, ela poderia ter ficado quieta mais esta vez. Eu poderia não ficar sabendo como não sabia que ela vivia ali na Antônio Vieira a poucos metros de mim na Gustavo Sampaio. Lia versos de Yeats sob a barraca de sol enquanto eu brincava com meu baldinho na areia molhada da Academy of American Poets. Mas é direito dela não gostar de poemas confessionais, sentir saudade da primavera no hemisfério norte e comprar pneus para o MG com o dinheiro dos prêmios literários. Para ser um bom poeta, a pessoa tem que marcar pelo telefone com antecedência. Como pode ter só 53 quilos e parecer tão gorda?, minha mãe comenta com meu pai, olhando a foto no jornal. Cara de prato com dois fundos teatros castanhos sempre piscando demais. Ela quase nunca vai à praia. Meu pai revira os olhos sempre que agraciado com a maledicência feminina. Ela come figos maduros com presunto no almoço e frequenta leilão de potros com poetas jovens ainda na gaveta. Depois que ganhou o Pulitzer, passou a escrever dentro da gaveta, porque se alguém chegasse de repente, ela poderia fechá-la depressa para não ter que mostrar nada ao curioso inútil. Com a mesma idade de Bishop ao chegar ao cansativo Brasil, eu cheguei na Samambaia. Fernhill. Também sem saber que ela havia morado ali na mesma rua quarenta anos antes de mim, cartografando o limo. Rua Djanira. A antiga fazenda, esquartejada e loteada, virou bairro. Ali também Djanira pintou o fundo de sua piscina novecentos metros acima do mar. Onde nuvens alcobacinhas continuam entrando pelas janelas das casas mofando portas, roupas, nervos, a obra completa. Nuvens carregadas de umidade a quem na verdade chamam neblina -- fog, em elizabetano. Ou ruço, como dizem os locais. Não há mais pés de caju, nem nunca vi samambaias. É o fundo do poço de Yaddo. Nunca morei em Ouro Preto. Ainda bem, senão eu poderia pensar que a senhorita me persegue e a senhorita pensaria que eu a persigo. Eu gosto de poemas confessionais. Não me afetam. I must lie down where all the ladders start.
4.4.11
Dias abafados
Encontro na
morte um velho amigo.
Vivo,
ansiava morrer.
Morto,
hesitava.
Abracei-o
e apoiei a cabeça em seu peito.
Magro,
veias saltando, seus braços falharam.
Ouvi
uma tristeza que não pôde evitar.
Tão
diferente nossa pele uma da outra.
Naqueles dias abafados foram a minha salvação.
Assinar:
Postagens (Atom)