30.11.11

De volta de viagem ao meu apartamento





Este 
        bule 
              está 
                     pensando





28.11.11

Double stops



Inácia é braçuda. Abre mensagens uma atrás da outra, 
o cigarro aceso estrangulado entre os dedos, sujeitos que falam. 
Apoiando o celular no ombro, aquele bração é um sofá extradiscursivo. 
Como era seu costume, Carlota pensa 
nos sistemas de exclusão do século 19 em sábados chuvosos. 
As duas estão muito actantes hoje mas não se mexem para me ajudar. 
Sigo direto para o meu quarto e faço as malas. 
Elas ficam sozinhas na sala, palatalizando. 
A casa é espaçosa para quem gosta e diz que não gosta. 
A biblioteca é cheia para quem não lê e diz que lê. 
Inácia e Carlota gostam de poetas neoparnasianos e me viram a cara 
quando chamo seus fluxos de consciência de torrentes de cabriolés. 
Eu não me importo, nunca espero elogios de quem me entende. 
Etiqueta para ignorantes é distribuir elogios. 
O mais difícil é sair de dentro de si sem precisar de focinheira. 
Eu gostaria de ver o que elas guardam no sótão para ter em que pensar no trem. 
Logo que cheguei me alojaram nos fundos, um aposento úmido com luz de lampião. 
Conversávamos no escuro e ao dormir eu sempre caía no sonho errado. 
Tive de trabalhar muito com minhas fantasias. 
Na cozinha cheirando a refeitório de colégio interno, 
o braço enorme me oferece um chá com Mussolini antes de eu partir. 
Uma indireta. 
Não falam em almoço ou saudades transitivas. 
Repasso meu itinerário encaixando algumas mentiras 
enquanto bebo na xícara feita por Inácia, 
segundo ela uma nova concepção de objeto ocidental. 
Carlota inveja minha errância, meu negligée, meus braços fininhos, 
mas ao me beijar abrindo a porta da rua, 
elogia a singularidade de minha “paginação”. 
Sensação de ardência no estômago. 
Na cabine, percebo que esqueci no criado-mudo do quarto de hóspedes 
minha Plongée velha onde fiz anotações para o futuro. 
Também não lembro de uma palavra que disse. 
Revejo na máquina as centenas de fotos que tirei do Zoo de la Barben. 
Inácia e Carlota só aparecem juntas duas vezes na frente de uma jaula. 
Não dá para saber de que animal. 
À noite me encontrarei com Alice no Baad Bukra. 
Se ela não tingiu os cabelos de vermelho e estiver de bom humor, 
talvez saiba reconhecer a jaula. 
Depois de tanto tempo fora, todas se parecem umas com as outras.


24.11.11

Os 300 francos que você me emprestou em 1976

1.


Flâneur da dialética ao drama barroco, o amigo de André Gide escreveu B-r-e-c-h-t com conhecimento das coisas comunistas. Saiu do túnel pela mão única, Lukács. O trabalho de recolher as passagens era transformar a União Soviética no retrato bem-passado de Walter Benjamin. As alegorias só aparecem visíveis na apresentação. Meu primeiro próprio era pura questão de reflexão. Um modo de pintar o momento como montagem. Contar a história em hieróglifos, fetiches da exceção. Já Baudelaire era uma beleza. Original, passado e trágico no banquinho ensebado da Escola de Frankfurt. Proust foi publicado por uma razão que se desconhece. Uma tradução que dá muito trabalho. Como restaurar a velhice na adolescência. Um homem nunca se consola dos prazeres que perde. Da emoção da época, da expressão nas caras de Victor Hugo. Dos títulos que poderia dar a todos os poemas sem título. Coisas com conhecimento de causa, cartas de amor em francês íntimo. A morte que chega no mundo a qualquer hora achando que é noite -- a universidade sem versos. Escreveu, escrito está. Esqueceu, esquecido está. Tanto faz homônimos ou heterônimos. Se a tia é portuguesa ou os lençóis estão amarfanhados. Camilinho sempre chamará a ciência de coisa. Esteta é o Alberto. Que não é amigo de André Gide, o flâneur da dialética à dama barroca. Desde o cubismo Deus ficou assim meio torto, saído do quinto dos impérios. Ponho o café no fogo e me conformo. A arte rivaliza muito com a análise. Atchiiiim.



2.

Amora admitiu pela primeira vez não entender nada de Aristóteles quando lia na praia. Eu respondi que a arte dos livros pensadores e dos comedores de Dublin era um problema preceptístico que eu ainda tinha de resolver. Amora assentiu com o sorvete e Tartu chegou nesse exato minuto perguntando a que horas saía o nosso ônibus para Heidegger. Amora entendeu menos ainda. Piscou para mim porque desconhecia as modalidades de Tartu embora eu já estivesse acostumada. Sozinho ninguém sabia mesmo. Quando se espalhava a notícia de que ele estava chegando na escola, as aulas terminavam e os professores se escondiam no banheiro. Amora ficou metrificada quando lhe contei. Jakooobson, ela sussurrou no meu ouvido sem Tartu perceber. Mas ele percebeu o sorvete pingando. Virei-me para ele e disse que havíamos desistido da viagem há tempos, só ele não lembrava. Ele esmagou um besouro com o pé e senti uma espetada na boca. Vou pedir uma travessa de costeletas de porco bem grossas, ele não se fez de rogado. Sua voz era baixa, estilística. Um memorialista supostamente não deve esquecer de nada. Amora fazia um estudo sistemático de sua barriga. Estou gorda? É impossível que aquilo que não é seja menos ainda, disse Tartu, filosófico. Arrume as malas e vá pro diabo, seus olhos cinzentos me diziam. Ele estava precisando é de raízes nutritivas e hipnóticas que suprimissem aquela fome e sede de saber, pensei comigo mesma. Amora lambia o vazio. Temperamento não se partilha. Tartu assobiou um scherzo. Não era novidade. A brisa trouxe um cheiro de chumbo. Quanto precisarei morrer para alguém me entender?, ele soltou a pergunta no ar como um balão. Nem nos preocupamos em alfinetar. Sem recepção e efeito, ele acabou indo embora sem as costeletas. Melhor assim. Molière mostra o mundo mas sempre tem um espírito de porco que acha que é Munique.


23.11.11

Venha morrer na minha casa




Eu só tinha um título. E a vítima. Precisava da história que inventaria para atraí-la ao meu destino. Era uma noite seca e eu ouvia atentamente o silêncio embrulhando as folhas que caíam na calçada: se estiver escuro à tua frente, nunca fica de costas para ele. Eu encarava a janela fechada fingindo esperar alguém. Do outro lado da vidraça o céu negro fingindo esperar tudo que espero de uma pessoa. Ao meu lado, a cadeira e a corda. Aqui me darás a mão. Aluguei o apartamento há dois meses, parece que moro ali há centenas. O inquilino perfeito. Sem ninguém além das paredes brancas. Quase como gelo escapado ao mar. O prédio antigo e comercial é um cubo cinza. O próximo à direita. Subo pela escada, na curva trêmula das lixeiras. Em algum andar eu preciso que acabe. Não mandei ligar a luz. Quando entro, acendo a lanterna. Minhas pupilas se dilatam em três segundos. Esqueço a mão nos cabelos. Ninguém me pagou para fazer isso. Não há contrato nem veneno de rato no armário da cozinha. Se trago um café da rua, bebo depressa. A investigação será fácil. O espaço exato das folhas dos jornais. Sem sangue nas luvas para contar-lhes o resto. Só profissionais planejam mínimos detalhes. É a minha primeira vez. O ódio tem mais tempo. Lágrimas formando espuma. Custo a dormir. Ouço risadas na água, não sei a mando de quem. O ruído dos meus lábios debaixo de mim. Fico me perguntando como uma morte a mais no mundo ajudará na formação do meu caráter. Metade do meu cérebro teme por mim. Metade ninguém metade daqui a pouco. Trago anotado o número do telefone no espelho embaçado do banheiro. Certas pessoas não deviam confiar nos amigos. São os primeiros a juntar-nos ao sal para que não fiquemos insípidos. Não me surpreenderia se cortassem metade da cena e a virassem na pia. Há uma outra. A casa sempre aberta, a mesa sempre farta. O conforto de olhos recostados, guarda-chuvas transpirando, ferramentas úteis ao trabalho, à família. O conforto do entulho. Não precisar me mexer para sair do lugar. Esta é a minha parte. Apegar-me a coisas que teria coragem de perder. A mesma noite de volta outra vez dizendo venha jantar comigo. Se ela soubesse que era mentira, não atenderia. Não dobraria o corredor. Sairia correndo da areia sem deixar nenhum rastro. Mas já era um percevejo no alfinete ao cruzar minha porta num clarão de fósforo. O que queria de mim não conseguiu. Não valia muita coisa, mas era meu. Assim seja.




9.11.11

O medo de






Irene era casada. Tinha um amante, um apartamento para encontros e dois filhos. O marido, juiz. Da alta sociedade vienense. Até que um dia uma mulher desconhecida descobre o adultério de Irene e passa a chantageá-la. Irene enlouquece e. A desconhecida a assedia sempre que Irene está na. O marido então. Irene tremia sempre que. Os filhos começam a. Um dia o amante resolve. Os criados sabem quando. A sensação de náusea foi ficando cada vez mais. Irene precisava fazer com que. Subiu as escadas com. O marido nem. Se o motorista fosse um pouco menos. A primeira medida foi. Entrou no escritório e. Quando se lembrou da. Imediatamente recusou-se a. Postou-se atrás das grades onde. Acabou que de repente. Ainda doía um. Abriu os olhos e. Muitas vezes.