16.6.12

Emma




Emma. Não. Querida Emma. Olhos expapuçados de calor. Hoje é sábado e ao lado chove. Não existe roupa seca. Estou em um hammam em Bouarfa e aproveito para te rascunhar umas palavrinhas. Pare de ficar encolerizada porque só me lembro de escrever quando sonho com você. É pouco para uma amizade sincera, sei disso, mas se pudesse controlar minha mente, não teria Aqui dentro as palavras vão borrando no vapor e gostaria de reescrevê-las porém mal posso respirar, me perdoe se não compreender alguma. Apenas leia. Outro dia comi com a professora de surdo-mudez. Com a, não a. Estou apresentando o fato de forma neutra. Como o que passou, passou. Estávamos sentadas no terraço em cadeiras de campanha. Você sabe em que guerra estamos? Me diga uma. Seja como for, ficamos ali, no escuro. O ar parado. Ela fazendo um barulhinho enquanto mastigava, eu no meu silêncio interpretando as mordidas segundo a linguagem dos sinais e ouvindo, “Então, na semana passada”, a professora disse, sem que eu tivesse perguntado coisa alguma, mas adivinhando. Contou uma história infeliz de tão triste de uma menininha grega órfã e doente dos pulmões que morava num barco na ilha de Leros até que um dia soltou as amarras a barlavento do destino e, ah, não vou recontar tudo aqui que não vai caber tempo no papel. Daí eu fiquei imaginando os cabelos da menina, a palavra grega para cabelo, os pulmões doentes flutuantes ressoando ao longe e se todo órfão da deusa fica doente de pulmões ocultos pela sombra dos cabelos. Isso tudo aconteceu com a professora de surdo-mudez na semana passada, se ela não mentiu para apoderar-se de mim e mastigar-me essa história. Eu só aceitei o convite. Comida mesmo não levei. Ela até ofereceu dividir a dela mas eu disse que já tinha almoçado ou jantado na barraca, não lembro, estava escuro e o vento que começou a soprar me dava náusea. Acho que ela fez que pena com um movimento facial. Ouvi isso também. Seu rosto era tão pálido que iluminava o chão quando baixava a cabeça. Nesses momentos eu aproveitava para pegar meus cigarros na mochila ao lado do cantil. Na mesma noite sonhei que uma mulher me sorria com a boca cheia de pinos parecendo um cinturão de balas de fuzil e me levava para dar um passeio em volta do fosso do castelo. Senti então o meu coração levantando a água com a pá dos remos e o resto do meu corpo se perdendo para sempre. Acordei pulando de um cesto largado em uma praia de areia. Arrastei-me até a barraca, a pele em escamas, só barbatanas flácidas e nadadeiras espinhosas, não sabia mais de mim. Eu só era eu porque a menina me reconheceu. No espelho da sala de banho posso ver meus olhos amarelados de pupilas pretas, minha cabeça cor de cobre com manchas rosadas, lábios verde-bronze. A abertura da boca é quase vertical, a língua, áspera em cima. Já tomei várias duchas e esta sensação não passa, Emma. Não. Querida Emma. A menina pergunta se compraste nossos ingressos para vermos La Sylphide. Não sei se chegarei a tempo. Respiro com dificuldade, a água escorre das paredes, mas ainda consigo segurar a caneta e te escrever. A verdade é que não posso sair daqui e anoitece outra vez. Estou sozinha. Em que guerra estamos? Me diga uma.