10.8.13

Rua Barão de Ipanema




Vejo 24 vultos da minha janela. "No campo de concentração de Majdanek, Kobyla chutava mulheres e crianças com uma bota cheia de ferragens." Meu tio chega da rua e põe Maysa na vitrola. Entra no banheiro e vai fazer a barba. Deixa a porta aberta. Eu fecho a
revista dos anos 1960 e o sigo pelo corredor do apartamento. O que é que foi, Fu Manchu?, ele diz, porque tenho os olhos rasgados. O papa é judeu?, eu pergunto na ponta dos pés para vê-lo no reflexo do espelho. Não, que ideia. O papa é católico, como nós. Os judeus têm um papa?, eu insisto. Não, quer dizer, sei lá. Por que essa preocupação agora? É que se os judeus tivessem um papa nada disso teria acontecido, não é? Nada disso, o quê?, ele quer saber. O genocídio. Ah. E onde você aprendeu esta palavra, posso saber? Na revista. Uma gota de sangue escorre do rosto dele e se mistura com a espuma do creme de barba. Você foi à praia hoje?, ele muda de assunto. Não, não fez sol, eu digo, sentando na tampa da privada. Teu pai chega quando de viagem? Não sei, a mãe deve saber. Onde ela foi? Saiu. Foi na Colombo comprar um remédio. Vovô era italiano? Hum-hum. Ué, mas ele não nasceu na Argentina? Foi, mas era imigrante. Ele veio da Itália com os pais e nasceu no navio que parou na Argentina, depois veio pro Brasil. Então ele conhecia o papa? Chega dessa conversa de papa, o que deu em você? Olha, o disco acabou. Vai lá na sala e bota o outro lado pra mim, tá bom? Tá bom. Em vez de virar o disco, eu o guardo na capa e pego outro. Dolores Duran. Meu tio entra na sala e eu me agarro no seu pescoço com cheiro de loção pós-barba da Atkinsons. Ele me ergue do chão e do seu colo olhamos para o mar. Na beira da praia uma mulher corre ao lado de dois cachorros. Sozinha. Quer dar uma volta na praia? Mas está chovendo, eu digo, virando meus olhos rasgados para ele. E o carro velho do seu tio serve pra quê? Nós dois rimos e a mulher na praia some entre os prédios.