Resolvi
ler os livros de Duílio sem uma ordem cronológica. Peguei o de 2007, mais pelo título, porque o dedica à mãe e a
primeira frase é curta e bombástica. Duílio escreveu sete livros em 51 anos de
vida. Não é muito se considerarmos que seus contemporâneos chegam a escrever
dois por ano. Mas Duílio não é desse tipo. É meticuloso. Espera as vivências,
deixa tudo marinando para depois rearranjar sentimentos e conclusões no papel. Não tinha pressa de contar. Esses
intervalos podem durar anos até ele fechar um acordo consigo mesmo de que tem
algo a dizer e está preparado para isso. Conheço Duílio desde o colegial. Eu
tirava as notas mais altas enquanto ele pensava. Nunca precisei pensar para ser
o melhor aluno. O que ele pensava não dividia comigo. Escrevia num caderno que
não mostrava a ninguém. Quando conversávamos, falava frases soltas, sem um
fio lógico. Eu precisava acompanhá-las e
montar o quebra-cabeça. Mais tarde, em casa, eu remontava e entendia outra
coisa. Ou chegava a outro resultado. Não sei bem se Duílio me ensinou a pensar,
era um processo mecânico de montar, desmontar e remontar as peças. Não via
sentimento nisso. Nem ideias que me
fossem de proveito. Era um jogo. Eu gostava porque não tinha um final. Para ele
devia ser diferente. Era como se falasse
sozinho e ia escrevendo na cabeça, sem pensar ou pensando demais, o que em certa medida dá no mesmo. Ou assim
eu pensava. As poucas frases que me dizia não deviam ser o livro todo. Mas dava
para juntar os pontos para eu chegar no meu mapa. No lugar em que eu queria
chegar. Que não era o dele. Ou assim eu pensava. Ou queria pensar. Acabei
fazendo engenharia e nunca mais vi Duílio. Casei cedo, tenho três filhos e acho
que tudo me cabe por direito, e esforço. Nunca precisei pensar para casar, ter
filhos e vencer na vida pelo trabalho. Foi acontecendo naturalmente. Sem pontas
soltas. A mente de um homem é como um bloco num condomínio de muitos blocos. Há
o porteiro, o faxineiro, o segurança, o
síndico, e todos os apartamentos estão ocupados, exceto um. Era ali que ele
guardava os sete livros que escreveu. As sete dedicatórias. Os 51 anos que
viveu dentro das sete pastas que sua mãe me entregou no dia em que a revi. As
sete pastas com os manuscritos dos livros que nunca publicou. Duílio deu o último
banho no seu cachorro, escreveu bilhetes
confessando que foi de caso pensado, alugou um flat em outro bairro e se jogou
do último andar. Deixar os manuscritos comigo foi seu último desejo. Eu sou
engenheiro e não sei o que fazer com
isso. Não posso fazer nada, apenas ler. Não sei se Duílio concordaria com o meu
desdém pela cronologia. Por embaralhar novamente suas frases e vivências. O seu tempo. Isso
ele não falava. Estou num hotel após o funeral e amanhã volto para São Paulo. Tomo
um banho e arrumo a mala. À meia-noite sento na cama e começo a ler 2007. Após
alguns minutos, pego no sono. Eu não sentia falta de nada.