1.8.15

[Devo amanhecer em casa]






Mãos nos bolsos do velho casaco preto. Um casaco de lã que Louis quis trocar por meu suéter amarelo ainda nos tempos da faculdade. Chove, Louis, você não acreditaria nessa cena tão ordinária. Louis morava de frente para a maior praia da cidade. Quando amanhecia, sua sala ficava azul. Céu e mar me furando os olhos e a agulha furando Funky Blues na vitrola grudenta de maresia que ninguém desligou. Mãos nos bolsos do casaco preto desta cidade gelada sem mar, o cinza tocando nas paredes. Nada me acorda pela manhã agora. Fome, tenho pouca, Lou. Não como nem depois da meia-noite, como fazíamos. Não me pergunte. Que o jazz já não me consola. O que era uma brincadeira virou clássico. Ninguém me quer por perto. Vendi o sax que você me deu. Cheguei a fazer umas gravaçõezinhas bestas, mas trocaram um monte de notas no estúdio. Ficou branco. Saí quebrando. Você me conhece. Não nasci noutro dia diferente. Fosse hoje, só teria ficado enojado. Don't blame me. Eu nunca decorei. Toco como quem anda de um lado a outro da cela vazia. A pauta é fugir. Mas hoje. Puxa, faz tempo. Bird, Hodges, Carter. Tínhamos o mesmo gosto. Você ainda dá festas tristes, Gatsby do Posto 5? Louis e suas companhias literárias. O que foge da minha lógica. Louis não tinha jeito com as mulheres. Fica fácil se elas caem no seu colo. Vindas direto da areia. Sentadas em poltronas caras. Esperando uma frase original. Um vinho. Um balbucio. O desdém. Minhas mãos frias e secas dentro do casaco. Alguma pergunta por mim? Ruas onde ninguém passa. Um carro. Conto dez minutos e passa outro. Uma luz na esquina. Milagre um bar aberto. Há quanto tempo fui embora, Lou? Cinco, dez, quinze passos. Bares me cansam. Nenhuma música. Olho pela vidraça. Duas cadeiras quentes e silêncio. Se um deles chorava, não pude ver. O mais não preciso explicar. Você nunca teve jeito com as mulheres, mas teve com a minha. Você está cuidando da asma de Zel com jeito? Recomendações à família. Ao apartamento. Não sei quando volto. Não sei se volto. Treze anos é muito tempo para ter coragem de voltar ao buraco de onde saímos por diletantismo. Não coloco mais os dois pés no acaso. São 4:20 e continuo andando. A melhor rua é sempre a próxima. Se der escrevo esta carta. Há uma simetria no lixo. Aqui ainda jogam restos na calçada. Melhor assim, ninguém se importa com a sujeira por que passa. Ainda bebo Black and Tan, como você me ensinou a fazer. Fecho os punhos com força dentro do casaco. Sabe, Lou. Eu não me arrependo de nada. Lou. De nenhuma decisão que tomei. Tive muito tempo para pensar no navio que me trouxe. Só não sei se pensava o certo. Se desistimos cedo demais. Isso ninguém sabe. Não está no repertório. Raspo as unhas na pele porosa e essa levada me acalma. Devo amanhecer em casa. Cinza.