27.6.21

Coração desfibrado

 

Coração desfibrado. Acordo à madrugada com dor no peito, respiração curta. Faço as contas. Hoje é o dia 9 de um resfriado que peguei há nove dias, inegável, ao sair à rua por obrigação inadiável e duas vezes mascarada após 15 meses de segurança máxima como El Chapo. O resfriado passou, mas por que esta dor no peito justo agora? Abro a gaveta ao lado e engulo um comprimido inteiro. Saio da cama. Dou uns passos pelo quarto e meu peito suspira exalando quatro arrotos. As garras soltam o meu coração. Volto a respirar normalmente.

Se estivesse com a peste, o ansiolítico não curaria. Você é neurótica.

Sim. Errou na segunda. Eu sou MUITO neurótica.

Uma suicida com medo da morte. Com que então.

Uma suicida acanhada, digamos. Enrustida. Tudo culpa do Vinicius. Depois que ouvi, “Por cima uma laje, embaixo a escuridão”, vi que ia ser um bocado chato.

Você não é suicida. É mórbida. A melancolia inicial foi capturada en passant pela morbidez. Empate por afogamento.

Desde o início da peste minhas duas mesas de trabalho são epopeias brutas. Narram a história dos meus dias sem ordem alguma nos acontecimentos. Mas acho ali tudo de que preciso. Comprei recentemente cobertores para o frio. Suponho que são de papel como tudo em minha casa. Faço estudos para saber se foram eles que deflagraram a coriza assombrosa que caracterizou um resfriado comum sem outros sintomas dignos de crédito. Procuro no “Poeta Lírico” do Eça um fio condutor que me puxe para escrever novamente textos mais longos, como o de um pequeno bote preso a um barco incalculável que o arrasta. Tenho de começar por algum ponto. Alguma boia sinalizadora.

Há meses que você só está engolindo o mundo. Ele não cabe em você. Precisa vomitá-lo. Ou funcionará como um explosivo de ruptura.

Eu sei.

Tomo uma colherada de chocolate em pó. Volto para o quarto. Escrevo isso aqui. Peço perdão por sair assim. Direção manual. Coloco um pé só na água. Está fria. Acendo um cigarro e me ofereço. Converso com ele em voz baixa porque ele não me conhece. Ele diz que se lembrará desta tarde comigo a vida inteira. Eu o apago na areia molhada e esqueço do seu rosto enquanto ele corre. Ninguém nos observa. A minha cama cada vez mais longe da cidade.