4.7.21

Longas Dores

 

Olá, Brasil. Olá, eu nesse mundo. Como posso contar uma história se a minha vida está uma merda e a ninguém muito menos interessa. Mas vamos lá. João saía muito cedo de casa todo dia. O gelo da manhã cobrindo o veludo verde da vegetação. Levava na mochila jaqueta de camuflagem, facão para bater o mato, balaclava para o ar frio, um frasco de aminofilina, uma cebola com Taurus e luvas de proteção. Trabalhava no sítio do Poço Vossa Vontade. Digamos que fosse Joana que levava a mochila. Dentro, o uniforme de cozinheira, um vidro de xarope. Só Joana sabia fazer os pratos preferidos do patrão no Rio de Janeiro --- a porta delirante de uma casa vazia, como gostam de definir poetas estrangeiros as cidades que visitam sem sair do automóvel. O patrão de Joana, um compositor que todos chamavam de o maestro. O famoso sr. Jon. Famoso sim. Muito famoso. Joana levava cafezinho todas as vezes que ele pedia lá do piano na sala. Uns quarenta cafezinhos por dia mais as refeições da família inteira e os cuidados com os filhos pequenos e dengosos do maestro que ficavam isolados no segundo andar para não atrapalhar as canções. Joana tinha bronquite. Não podia tossir para não interromper a inspiração e sobressaltar as notas que saíam do piano por mãos assedilhadas. Joana só sabia que o piano era bonito. Deve ter saído caro. Tudo era caro naquela casa. A comida simples, a música complicada. Ela não a entendia mas, como o arrulho dos pombos na praça e o estalo da madeira no braseiro, até que dava para distraí-la durante o corte da cebola. Sempre durante o corte. Para achar o olho. Joana nunca teve alguém que lhe dissesse você está bem? de verdade. Olho no olho. O olho na cebola. Eram grandes composições. Vendiam muito. Joana foi com eles para Nova York amarrada junto com o piano na mudança da família. Conheceu a maior cidade do mundo no caminho entre o apartamento e o supermercado. Posso dizer aqui que ela não conheceu a estátua da liberdade, uma liberdade de cimento e aço parada não trabalha, não serve para nada, Joana ria. A mala de Joana para a viagem era pequena. Com mais uniformes, toucas e aventais, um item limpo para cada dia de trabalho. E o maldito piano tocando sem parar aquela música que saía de dentro dele. Dé, me vê café, o compositor gritava. O nome dela era Joana, mas o compositor gostava de rimar. Achava bonito. Dé odiava ser chamada de Dé, apelido do seu primeiro padrasto, um matador de aluguel graças a deus morto pela polícia quando Dé, me vê café, tinha treze anos. Sua mãe logo o substituiu por outro que também gostava de cebola. O olho da cebola. Só Joana sabia ver o olho da cebola. Ela fazia o olho da cebola chorar. Joana tinha ê nojo! dos padrastos. Foram muitos. Tinha ê nojo! do compositor. De sua cabeleira branca sebosa, dos charutos fedorentos. Das palavras difíceis que usava com os amigos e das fáceis que dirigia a ela, o mesmo que chamá-la de toupeira. “De poucas palavras nasceram muitas obras”, o seu Jon não devia conhecer este sermão. Pela manhã ela precisava escancarar todas as janelas para expulsar o odor pestilento de fumaça e álcool. Eram muitas janelas. O prédio, muito alto. O apartamento lá no topo. Onde se pode fazer uma escolha. Se alguém caísse, não ia sobrar nada. Ela ria. Imaginando coisas, soluções, receitas. E tossia. Vontade de passar o facão de mato naquela catarreira. Você está bem, Joana?, a patroa disse trombuda porque acordou com a sua tosse. Não era um está bem de verdade. Não é nada não, respondeu, mas preciso sair para comprar café. Que acabou. O seu Jon vai ficar brabo. Ele só toma café daquela marca. Note-se que eu não tenho a menor ideia de como vai acabar esta história porque estou com pena de Joana, estou com pena de mim, e é um pouco desesperado ter pena dos personagens, ter pena de nós mesmos. Pactuar com eles. Desagrega o desenvolvimento da narrativa, da vida. Talvez seja por isso que eu a quero Joana nem é personagem, penso comigo. Sou eu de novo e nem tenho gosto. E a jogo aqui no papel como um corpo no ar. Não a conheço pelo vidro da janela. Não vai dar tempo. Mas conheço o compositor. E Joana abre as janelas e por elas eu posso entrar voejando, embora não precise disso para saber como ela vive no seu quartinho de serviço. Temos algo em comum, um pequeno arame cruzado, eu também habitei quartinhos de serviço por um bom tempo. Ficar o mais longe possível da família era o meu emprego não remunerado. Não tenho problemas com estreituras. Durmo em qualquer pedaço de chão ou terra onde caio embriagada afofando travesseiros de tijolo. Mas Joana não achou o café preferido do compositor em nenhum lugar daquela cidade de merda. Andou horas por avenidas e ruas estranhas de povaréu esquisito meio morto com línguas enroladas e não achou a porra do café. Acabou se perdendo. Ligou para a patroa cara de laranja chupada e ela foi apanhá-la em outro bairro. Sem o café. Joana chorou no carro. A mulher do maestro de Joana disse não tem problema, mas pare de chorar, está bem? Outra vez ela ouviu está bem sem um você, ela sentiu. O compositor irritou-se mas resolveu esperar e falsificou simpatia. Um dia Dé vai achar café, né, Dé? Não achou. O piano ficou mudo. O homem começou a passar mais tempo na rua e voltava para casa sempre grogue sem nem olhar para o piano, o charuto estourado na boca. Uma noite de porre é uma canção a menos. Joana achou que era por saudade do café. Quase vício. Sentiu culpa e prazer. Os dois sentimentos engalfinhados pioraram sua bronquite. Ela tossia cada vez mais. Isso tudo no verão. Ia dar um fim naquela bronquite com um Taurus. Dias depois o compositor a despediu com dez notas de cem dólares e uma passagem de volta para o Brasil. O maestro de Joana se acabou em pouco tempo. Cansaço, que é o câncer assim de repente. Ela soube pelo jornal em que morre muita gente e chorou. Depois riu. Não tossiu. A bronquite estava curada. Ligou o rádio e a música dele estava ali dentro. Uma música que ela viu nascer. Foram muitas homenagens. Joana casou. Foram poucos convidados. Um cuitelinho na varanda. Hoje tem dois filhos. Um se chama Jon. O menino com olhos de cebola. Seu marido detesta café. Não tem tempo para música. Parece que vai dar certo. O Senhor fez em mim maravilhas, Santo é o Seu nome. Moram numa casinha distante em Longas Dores construída sobre o nada. Eu moraria nesta casinha. Acho que Joana hoje está bem. Não preciso perguntar.