23.2.11

A carteira vazia espera a menina




A carteira vazia espera a menina voltar das férias.

O caderno em branco espera uma linguagem de tripas.

A pequena desenha bolhas na água

antes de expor ao fogo os dois lados da carne.

A mãe espera uma vaga no estacionamento.

O pai escolherá o de madeira mais barata.






16.2.11

As primas procuram sob a cama




As primas procuram sob a cama o camarim de lençóis.

Os primos pingam moedas nos cofrinhos.

Querem ver para crer e dividem uma poltrona.

Ao fundo risinhos de uma outra vida.

Uma menina traz a pipoca. Pouco falta agora.

A dois passos dali uma fila de baratas donairosas

cruza o tapete vermelho, as asas palpitando.

Os primos despem-nas com olhos arregalados.

Sedas, plumas, tiaras e pedrarias.

As meninas apagam a luz e deixam o quarto.

Os ninhos da casa suspiram.

As mulheres do seu tempo não são mais feitas de carne.





15.2.11

Se ela disser quinta-feira




Odeia a própria cara.

 Alimenta o rancor com miolo de pão,

 modelando nariz, boca e orelhas

 de um romance sovado

 numa caixa sensorial de farinha.

 

 Se ela disser quinta-feira,

 eu atendo.





7.2.11

Cranberries




Quando ela entrou pela porta da cozinha,

vi em seus olhos que havia acabado.

Perdi o apoio dos pés.

Conversas não adiantariam mais.

Já havíamos moído toda a carne.

Voltei-me para meus amigos.

Eram nove pessoas transpirando álcool numa cozinha abafada

e alguma coisa dentro de mim se aconchegava.

Outra incomodava.

Na sala alguém ouvia Cranberries sem parar.

Ela teria rido de mim se já não me ignorasse.

Todos teriam rido de mim se já não estivessem rindo de outra coisa.

Sem tirar o cigarro da boca, ela abriu a geladeira num impulso motor.

Os músculos de minhas costas trincaram.

A geladeira abraçou-a.

Eu não tive a mesma sede.






3.2.11

Estética a Nicômaco




Não tenho pai, não tenho mãe,
não tenho irmão, nem amigo.
Tenho uma rapadura de laranja
presa por arame farpado
numa moldura de dez por quinze.
Sou muito afeiçoado.