29.4.17

O pátio





Eu não chamo minha filha de Hilda
Se tiro as lentes tudo embaça
E Hilda já foi

Descemos o pátio

E te apoias em mim
No que não digo
A trava estala no vão da porta
Giro o corpo e aponto

Tu te apoias no meu sangue

E o navegamos em água do mar







19.4.17

Essa




Essa
apertando os lábios como quem sente dor
Já sabia muito bem o significado de família
Atropelamento, suicídio de estranhos próximos, morte
Gripes constantes, garganta inflamada e febres
Rapto de crianças, empalamentos
Elevadores com portas pantográficas
Maysa, Dolores Duran e Bossa Nova
De sexo nada, de amor e beijos, sim
De sorvete de chocolate
Sonho e algodão doce
De Monteiro Lobato e gibis
Do Holocausto e campos de extermínio
De padres sebosos e uma nova capital
Da Lua e de marcianos
Do cheiro de sangue
Do cérebro quando se desfaz nos trilhos
Da loucura, não
Essa
fugia para o mar
seu único amigo e confidente






17.4.17

[naquela rua sobe ônibus]








naquela rua sobe ônibus
naquela rua desce carro
naquela casa soltam fogos
e desejo que morram
mas isso é com o Senhor
o Senhor que se esconde
porque deve ser propineiro
dos impérios a que favorece
eu quero ser comunista utópica
totalmente anárquica
eu quero tanta coisa
quero anne sexton nua
lendo seus poemas para mim
num motel em San Diego
enquanto tomo banho
num chuveiro entupido
e acho os versos dele 
a coisa mais linda do mundo








16.4.17

In memoriam






À Vivian Wyler, que entenderá. Pela corrente, viva. Água. Nada nos prenderá.
Até breve, querida. Obrigada por acreditar desde o começo. 
Fique em paz.






14.4.17

1 poema de Anne Sexton




O coração morto



Depois que escrevi isso, um amigo rabiscou na página, “Sim".
E eu disse comigo mesma, “Preferiria que fosse por um 
arrebatamento diferente — como Molly Bloom e seu 'e sim
eu disse sim eu quero Sim'".



Não é uma tartaruga
escondida em seu pequeno casco verde.
Não é uma pedra
para você pegar e colocar sob sua asa negra.
Não é um obsoleto vagão de metrô.
Nem carvão que se possa acender.
É um coração morto.
E está dentro de mim.
É um estranho
que já foi satisfatório,
abrindo e se fechando como um molusco.
O que me custou ninguém pode imaginar,
psiquiatras, padres, amantes, filhos, maridos,
amigos e muito mais.
Saiu caro continuar.
Mas ele deu o troco.
Não negue!
Fico imaginando se abril poderia trazê-lo de volta à vida.
Uma tulipa? O primeiro botão?
Mas são apenas devaneios meus,
a compaixão de quem observa um cadáver.
Como ele morreu?
Eu o chamei de VIL.
E disse a ele, seus poemas cheiram a vômito.
Não fiquei para ouvir a última frase.
Ele morreu na palavra VIL.
E o fez com a minha língua.
A língua, dizem os chineses,
é uma faca afiada:
mata
sem derramar sangue.




("The Dead Heart", trad. Maira Parula)




6.4.17

Terra Gasta




É uma terra gasta. Ela traduziu como gasta. São três minutos daqui até o sinal vermelho. Dora não está na base em Munique. Estivesse, tomaria cappuccino. Mas ali Dora pede cachaça. O químico disse que toda cachaça daquela cidade lava a gordura ingerida pelo corpo. Lava todos os males. Comia o pé de porco com as mãos. Ela o respeitava e tinha pena do porco vivo. Naquele dia almoçaram na Alameda dos Fetos. Nunca conseguiu ter uma visão botânica da paisagem. Depois se protegeram da chuva sob a colunata. Esta é uma terra gasta. Precisava entregar o material às 18 no máximo e só tinha o final pronto. Como começar para chegar até ele? Uma explosão de bomba no metrô – um falso médico à cabeceira do informante terminal – um anel inteligente que se joga no bueiro para alcançar a cidade mais próxima – não, já tinha visto recurso igual em 17 filmes pelo menos. Começar pelo fim complica. É como chegar em casa sem ter saído. Terá de lembrar dos passos que não deu para chegar até ali. Ou apelar para a lembrança dos caminhos que fez no dia anterior, mas o final será outro. Outra casa. É uma terra arrasada. A cachaça acaba em curtos goles. Não sente nada. Nenhuma diferença de quando chegou. Está ali há meia hora e a mesa limpa já se cobria de pó. Cobria as pistas. O papel do caderno barato não aceita a tinta. Tem de escrever a lápis. Eletrônicos chamam atenção. Fica olhando para o último parágrafo. Seis linhas que não lhe contam nada. Fecham uma história que ela não sabe como começou. Procura em cada frase um sinal. Depois palavra por palavra. Estão lacradas. De má vontade. De rabo preso. O de olhos ternos. Um homem na mesa ao fundo não lhe tira os olhos de cima, como se seu amor bebesse por ela. Sempre que isso acontece ela os imagina cegos. Não tem por que olharem para ela. Que nem ali está. São olhos que veem o que inexiste. Um pássaro que contém almas aprisionadas. Sua mão atravessa a mesa e pega um novo maço de cigarros inócuos na bolsa ao chão. O homem a acompanha pelos movimentos. É um cego astuto, um marinheiro fenício, detecta pelo calor. Dora encosta a cabeça na parede e do outro lado é um posto de saúde. Velhos, mulheres, crianças tossindo, aguardam a chamada em meio a garrafas de água parada. Dois bancos e um cartaz de silêncio. Ela espirra com a poeira do reboco e gira a cabeça de volta para o caderno. “A toda gente coube o umbigo, única prova de sua humanidade terrena.” Uma epidemia – uma pandemia. Suas mãos se esfarelam e ela esconde os braços sob a mesa. Espera que voltem. Da última vez demorou quinze minutos. Contou-os no relógio da estação. Ela ainda precisava de um começo. E quando tiver 110, fará de novo 55.