Toda manhã tomo um comprimido
de algum lugar
que deveria acontecer
autoral
Hei de acomodar-me em ti como o rio ao leito,
como o mar à praia, como a espada à bainha.
Hei de correr em ti, cantar em ti, guardar-me em tipara sempre.
Fora de ti o mundo há de sobrar-me, como ao rio sobra o ar,
ao mar a terra, à espada a mesa do banquete.
Dentro de ti não há de faltar-me brandura de limo para minha corrente,
perfil de vento para minhas ondas, cingidouro e repouso para meu aço.
Dentro de ti tudo está; fora de ti não há nada.
Tudo que és está em seu posto; tudo que não sejas me há de ser vão.
Caibo em ti, feita à tua medida; mas se for em mim
que algo falta, cresço... se for em mim que sobra, corto.
(Dulce María Loynaz, em Poemas sin nombre, 1953. Trad. Maira Parula)
Não que eu esteja enlouquecendo, mas o verão me deixou esgotado.
Ao buscar uma camisa na cômoda, o dia já está acabado.
Que o inverno chegue mais cedo e sepulte o terreno inteiro –
a cidade, as pessoas, e a vegetação acima de tudo.
Eu dormirei completamente vestido ou lerei uma página aberta qualquer
de um livro que não conheço, enquanto as sobras do ano terminam,
como um cão que foge do dono cego atravessando o asfalto no lugar certo.
Liberdade – é quando esquecemos o patronímico do tirano,
e nossa saliva é mais doce do que halva de Shiraz,
e, assim, mesmo que o cérebro, como um chifre de carneiro,
seja torcido ao máximo, nada pingará do azul do olho.
Joseph Brodsky, "Not that I'm going mad...", 1976. (Tradução Maira Parula)
Para Szymborska a propósito de seu poema "Pisanie życiorysu"
Redigir um currículo.
O ranger das fragmentadoras de papel.
O lett me sitte hēr fore ever
with my quyet thynges,
this clere fyr in flambes, rope
and knyf thou shalt not sēn,
thynges alast in theim-self,
mi-self being ech of theim.
Eu nadava bem, mas sabia que estava demente.
Só não sabia se os outros tinham esta percepção de mim.
A família. Meus rivais nas raias.
As mãos que me cumprimentavam.
Eu sabia disfarçar, lendo e nadando, lendo e nadando. Muito.
E o principal: a expressão serena. Tanto.
Quando seguia para treinos ou competições,
já tinha me esquecido de por que havia saído de casa.
Um motorista discreto me socorria nestas horas.
O meu treinador na porta do clube.
E principalmente a água.
Bastava mergulhar e me lembrava de tudo.
Aposto que você nunca teve a sensação de lembrar-se de tudo
que aconteceu na sua vida em 100 metros de nado borboleta.
Mais que uma sensação.
A realidade.
A biografia completa.
E sempre a mesma, perfeitamente narrada.
Todos os momentos encaixados por uma ondulação cronológica precisa
a cada fase propulsiva de braçada e pernada.
Ao subir no pódio para receber a medalha,
não lembrava de mais nada.
Acabado o ciclo de inspiração e não inspiração dentro da água,
eu me via de novo sem sincronismo,
sem lembranças, sem ar entre elas.
Voltava para casa na velocidade errada.
A medalha largada no banco do carro.
Guardei teu murmúrio em mim
As palavras mortas nas cartas
Guardei das montanhas o poder
A transparência do tempo
Plantei a violeta no silêncio
Dos meus olhos
Guardei a eternidade da súplica
A tristeza do refrão
Guardei a tarde na areia
Sobrevivi à palavra dolorida
À narrativa sem enredo
À fábula sem desenhos
Perdi tuas ausências
Meu hábito de olhar de longe
A própria vontade de ter
Perdi as curvas do crepúsculo
O outro lado da ponte
Os minutos rio abaixo
Perdi a resistência
Do guerreiro
Perdi a hora do vento
Ao te perder
Voltei a mim lentamente
Todas as lembranças
São companheiras do tempo.
*
Dora Vasconcellos, "I have treasured your murmur". Poeta e diplomata, Dora foi letrista de Heitor Villa-Lobos. Três livros publicados. (Trad. Maira Parula)
Imagine there's no heaven.
Imagine there's no countries.
Imagine no possessions.
Imagine all the people.
Dig a hole in your garden to put them in.
(On Lennon's Imagine & Ono's Cloud Piece)
É agosto e faz seis meses
que não leio um livro,
exceto um tal de A retirada de Moscou
de Caulaincourt.
Mesmo assim, estou feliz
andando de carro com meu irmão
e bebendo uns tragos de Old Crow.
Não temos nenhum lugar em mente para ir,
apenas seguimos em frente.
Se eu fechasse os olhos por um minuto,
estaria perdido, se bem que
eu me deitaria com prazer e dormiria para sempre
na beira desta estrada.
Meu irmão me cutuca.
A qualquer momento, algo vai acontecer.
Raymond Carver, do original "Drinking While Driving". (Tradução Maira Parula)
Todos estão sozinhos no coração da terra,
apunhalados por um raio de sol:
e de repente a noite.
Salvatore Quasimodo, "Ed è subito sera". (Trad. Maira)
Áte
A humanidade e suas hediondas ninharias.
O que não me impede de seguir a rua e abraçar louise glock na bolsa.
Sugeri a Casimiro que retirasse a crase daquela tarde
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Ofendeu-se.
Saí do trabalho às três da manhã. Esgotada.
Resgate de corpos não tem hora para acabar.
Romper com o meu aidós era a única coisa que eu poderia fazer para salvar-me.
A exclusiva Rubbing House de Madame Haydée ainda estava aberta.
Como combinado, Madame agendou para mim o maior clitóris do seu coro.
Eu estava faminta. Trêmula de morte.
Sem muita demora, engoli e engolida fui até o dia clarear.
A Obcecação acolheu-me inteira em sua rede.
Aliviada, fui embora com um gosto de framboesa na fúria dolorida.
Mal podia caminhar.
Lá fora, o odor de putrefação era um lótus intocado.
Sereia
Virei criminosa no dia em que me apaixonei.