Eu não poderia lavar alface nessa pia. Moro num 3x2, pia e privada incluídas. E uma janela-basculante sobre a Guanabara. Quando se mora há muito tempo num 3x2, não dá para lavar alface na única pia do lugar. E eu moro há mais de vinte anos ao lado dessa pia de frente pro mar. Ela é o meu mundo. Toda a água de que preciso nesta vida eu sei que sairá por ali. A pia é o meu atlântico, minha lagoa, minha piscina. Aqui lavo o rosto, as mãos, os dentes, o cabelo, o corpo por inteiro. Por isso botei minha cama ao lado da pia. A pia é o meu relógio. Quando quero saber o tempo que passa, basta abrir um pouco a torneira e contar os pingos. Aprendi que o justo controle da pressão da água me daria também tudo de que eu precisava para ser feliz. Pingos diferentes são música. Pulsos lentos, pulsos rápidos, meus tímpanos vibrando na frequência dos pingos, formando compassos. Eu divido o fluxo da água para obter o som que bem quero, mas às vezes a torneira me surpreende com uma batida diferente. São momentos mágicos, posso dizer assim. Como as horas em que dou toda pressão e uma cachoeira entra no meu quarto. Tudo é questão de fechar o ralo certo. Na medida certa. Para pessoas comuns um ralo é um ralo. Bocal de canalização de esgotos, como nos dicionários. Pessoas comuns e dicionários têm ideias menos imaginativas a respeito dos ralos. Para mim são a porta de saída da minha vida. Como a torneira é a porta de entrada. O que eu preciso é controlar ralo e torneira. Mantê-los em sincronia. Onde um cede o outro resiste. Os dois não podem ceder e resistir ao mesmo tempo. E assim vou aprendendo com a minha pia o que é o mundo das possibilidades. A pia é o único professor que eu tenho à mão. E eu nunca sei qual será a próxima aula.
(2006)