26.4.12

Rute



Puxou da bolsa a câmera ensebada e filmou os pratos da balança do armazém. Num segundo plano o poço de ferro. Ao fundo os labirintos de canteiros. Uma imagem tira a palavra da boca das pessoas. Ela cobre a lente e continua escutando. Não diz nem pensa. Não sabe quando as meninas más começaram a ter medo de mim. Os répteis não enxergam muito bem fora do alcance imediato da língua, a não ser que algo se mexa insistentemente. E elas sempre se mexiam, a menos de três metros de mim. Um erro que podia lhes custar caro. As meninas boazinhas meu cérebro detectava mesmo sem prestar atenção, e seguia para a próxima imagem, poupando espaço na memória profunda. Boas ou más, todas precisam moderar seus apetites com fluoxetina. Eu só preciso de 200UI diárias de pé ou sentada. Houve tempo em que chorava e me rebelava, hoje tenho pleno controle dos meus impulsos rudimentares, que a alma não pensa em nada. Sabe esperar. Age naturalmente, como as pessoas que engraxam a linguagem mas expõem suas unhas dos pés sujas à sociedade. O ano de 1966 ficava numa das portas, por onde saí em sexta-feira de panquecas. Janeiro se abanava sob a barraca, passando protetor solar nas estrias. Antes de abrir os olhos, eu já conhecia as cores entrando pelos ouvidos. Os vasos de flores nas mesinhas dos hospitais e dos restaurantes, uma percepção não ancorada do que veria no futuro. Peixes não compreendem a água, todo mundo sabe. Ninguém precisa ensinar. É reboco histórico. Você só precisa sair da dormência. E conhecer Rute. Rute tem doutorado em vodu afetivo. Coleciona caveirinhas de porcelana em barbante para me agradar. Quanto mais emagrece, mais cabeçuda. O cérebro rolando solto no crânio feito ovo na chaleira. Eu me canso de repetir. Maldade exige inteligência cumulativa. E secreta. Não é coisa que se mostre assim, para fazer rir uma plateia de discentes. Meninas más não matam mais os pais com formicida. O tempo transforma o veneno em endorfina. Ter fé é acreditar no absurdo. Tenho uma foto de Nossa Senhora me dizendo isso numa esquina da Barata Ribeiro. Os que creem não se alimentam, porque creem. Por isso Rute lava-me, unge-me, põe minhas melhores vestes e descemos à eira, mas não se deixa reconhecer antes que a Virgem tenha acabado de me comer. Se pelo menos tivéssemos um filho.


24.4.12

Não era mais um lugar






Não era mais um lugar
o que passei toda a infância.

Eram lábios que se mexiam.




21.4.12

E você cometerá outra vez



Como se pode viver com alguém sem criar expectativa nenhuma? 
Como um zumbi talvez. Com um zumbi também. 
Eu confundo um pouco os fatos. 
Quem se aproxima de zumbis acaba se transformando em um. 
Basta esperar o tempo passar. Não precisa muito. 
Uma ponta da noite e você vai ver. O iceberg inteiro. 
Ao nascer do sol verá que percorreu quarenta milhas a hora 
e ainda acha que foi ontem. Está no mesmo lugar e longe. 
Morto à beira de um lago, uma banheira, que julgou ser o mar. 
Uma citação não favorece a poesia. A poesia não favorece o corpo. 
O corpo quer engolir outro corpo, pela linha que passa de polo a polo. 
O amor, seu capote de lã. 
E você cometerá outra vez e outra vez. 
Quantas forem necessárias e se ainda houver água na cisterna. 
Enquanto seu olhar for de si mesmo, o que é sinal seguro de terra. 
A vida não cobra nada para repetir o mesmo ato. O sim e o não. 
Uma pequena risada no café da manhã. 
As glândulas independentes da vontade. 
Escravo da contração dos músculos. 
Mas seus cães ainda estão ali, 
esperando pelo seu carinho do outro lado da janela. 
E nesta hora você não pensará nos babuínos.



16.4.12

Pessegueiros afogados













Virados para a meia-noite, os intestinos de Nereu são um vozerio de homens ao mar. Daquele lado ou do seu contrário. Por isso ele me pede a cada manhã que conduza mais célere os acontecimentos na cozinha. Nunca hei de perdoar-lhe meus pessegueiros afogados. O meu estado de alma – esta linha do horizonte que o sol não atinge mais. Orgulhoso dos méritos de sua digestão, que expressa por som e imagem, não é pequeno o desejo de vê-lo morrer pendurado em um deles enquanto descasco um continente de batatas tomando-me pela mão. Batatas não me levam muito longe. Não à Muralha da China. Abacate limão podre tangerina. Porque tudo isso se encontra por aí, plantas para arrancar o tempo, com toda a raiz. Vasos cheios de amor, sem ninguém a lhes tocar. Pão fresco. Derrotando por um fino curso d’água que paga caro pelo que arrasta, não vou muito longe. Não vou. Depois que as chuvas refrescam o ar, a lua segue o seu destino. Ou volta para casa. Ninguém deve sair à superfície após o terceiro toque.


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