24.6.14

1 poema-conto de Sherwood Anderson





O mudo


Tem uma história. — Não consigo contá-la. — Não tenho palavras. A história está quase esquecida mas lembro dela de vez em quando.
A história é sobre três homens em uma casa numa rua. Se eu conseguisse dizer as palavras, eu a cantaria. Sussurraria a história no ouvido das mulheres, das mães. Correria pelas ruas contando-a mil vezes. Minha língua se soltaria - vibrando contra os dentes.
Os três homens estão em uma sala na casa. Um é jovem e almofadinha. Ele ri sem parar.
Há um segundo homem com uma barba comprida e branca. Ele está consumido pela dúvida mas às vezes a dúvida o deixa e ele dorme.

Um terceiro homem de olhar demoníaco anda nervosamente pela sala esfregando as mãos. Os três estão esperando — esperando.
No andar superior da casa há uma mulher de pé encostada na parede, na penumbra ao lado de uma janela.
Esta é a base da minha história e tudo o que saberei está destilado nela.
Lembro que um quarto homem entrou na casa, um homem branco silencioso. Tudo era tão silencioso como o mar à noite. Seus pés no chão de pedra da sala em que os três homens estavam não faziam som algum.
O homem de olhar demoníaco virou um líquido em ebulição — corria de um lado para outro como um animal enjaulado. O velho foi contagiado por seu nervosismo — ele ficava puxando a barba.
O quarto homem, o branco, foi ao andar superior ter com a mulher.

Ela estava lá — esperando.
Como a casa estava silenciosa  — como os relógios dos vizinhos tiquetaqueavam alto. A mulher do andar de cima ansiava por amor. Esta devia ser a história. Sua fome de amor dominando todo o seu ser.  Ela queria criar o amor. Quando o homem branco silencioso aproximou-se ela saltou para a frente. Seus lábios estavam entreabertos. Havia um sorriso neles.
O homem branco não disse nada. Em seus olhos não havia reprovação, perguntas. Eram olhos tão impessoais como estrelas.
Na sala o demoníaco gania e corria de um lado para o outro como um cachorrinho perdido e faminto. O grisalho tentou segui-lo para cá e para lá mas logo se cansou e deitou no chão para dormir. Nunca mais acordou.
O companheiro almofadinha deitou-se também no chão. Ele ria e brincava com seu bigodinho preto.

Não tenho palavras para contar o que aconteceu na minha história. Não consigo contá-la.
O homem branco silencioso talvez fosse a Morte.
A mulher faminta que esperava talvez fosse a Vida.
O homem grisalho barbado e o demoníaco me confundem. Penso, penso e não consigo entendê-los. Mas na maior parte do tempo não penso neles. Fico pensando no almofadinha que riu durante toda a minha história.
Se eu conseguisse entendê-lo, entenderia tudo. Poderia correr o mundo contando uma história maravilhosa. Eu não seria mais mudo.
Por que não me foram dadas palavras? Por que sou mudo?
Tenho uma história maravilhosa para contar mas não sei como contá-la.


(do original "The Dumb", 1921. Tradução MP.)





17.6.14

Um trem com hora marcada




Estamos sempre nos plagiando. 
Contínua e diariamente. 
Na vida e na literatura
do que vive e escreve
o outro um dos seus. 
Numa emoção barata ou 
num fiapo de pensamento
do quarto ao banheiro e corredor. 
Como um trem com hora marcada 
para o trabalho ou para a guerra, 
de manhã é o mesmo café com pão. 
Você finge examinar o motor
e as regras da gramática.
Você olha para o céu copiado. 
Sabe que só vai encontrar lá
uma duas ou três coisas da lista. 
Você tica 
e tudo em volta 
dentro de você 
confirma o esperado.
É a calma. 
Você assina e segue adiante. 



Estamos sempre nos plagiando. Contínua e diariamente. Na vida e na literatura do que vive e escreve o outro um dos seus. Numa emoção barata ou num fiapo de pensamento do quarto ao banheiro e corredor. Como um trem com hora marcada para o trabalho ou para a guerra, de manhã é o mesmo café com pão. Você finge examinar o motor e as regras da gramática. Você olha para o céu copiado. Sabe que só vai encontrar lá uma duas ou três coisas da lista. Você tica e tudo em volta dentro de você confirma o esperado. É a calma. Você assina e segue adiante. Contínua e diariamente do quarto ao banheiro e corredor. Um trem com hora marcada para o trabalho ou para a guerra é a calma. O céu copiado numa emoção barata finge examinar o motor dentro de você e sabe que só vai encontrar lá regras de gramática. Você tica um fiapo de pensamento e escreve o outro um dos seus. Estamos sempre nos plagiando do que vive e escreve o esperado.




8.6.14

Zona morta




o regulamento não permite 
andar com a vida nas mãos
sem jogá-la ao chão em 5"

circulei a quadra de bicicleta

e  lancei-a ao cesto 
sem tocar no aro

fiz 3 pontos de fora do garrafão