20.6.14

Não diga nunca




Querido Max

Eu sei que você deve estar vendendo cerveja na praia e que por isso não tem tempo de aparecer aqui para nos ver. A cidade está cheia de turistas e é uma boa oportunidade para tirar um dinheirinho extra. Eu sei. Não precisa me explicar. Quem não precisa de dinheiro neste vale das balsameiras? Lembra quando a mãe nos falava isso, Max? Que só o comércio nos salvaria. Que escolas fazem gente inteligente para um desemprego nobre. Escolas são para gente de mãos finas e delicadas, não para nós. Eu sei que você está vendendo cerveja na praia. Leva salgadinhos também? A praia é tão longe de tudo e aquela gente rica fica com fome cedo, mesmo de barriga cheia. Alguém lhe ajuda nisso? Pode me dizer. Não se envergonhe. Não devemos nos envergonhar do trabalho honesto. Max tem vergonha de me dizer que vende cerveja na praia. Que precisa andar quilômetros para chegar até lá. Uma praia em que costumávamos nadar, pescar e catar siris para comer mais tarde. Hoje aquelas águas estão sujas. Não há mais siris. Não sei por que ele tem vergonha de ser um ambulante. Um ambulante que não se desvia do seu caminho para me visitar. Não vem vender na minha porta. Hoje está chovendo e Max não deve estar na praia. Fico pensando onde Max está numa hora dessas com essa chuva. Em casa. Sozinho. Ruminando. A mãe se preocupava muito com você, Max. Com sua felicidade, os seus vícios, a sua falta de uma religião, de uma luz para colocar no candeeiro. Eu também fico em casa vendo aquele filme na TV. Mas eu tenho Deus dentro de mim. Leo trabalha o dia inteiro naquela maldita serraria e até que precisa de uma ajudinha sua. Não tem ninguém lá com ele agora. Max sempre detestou a serraria do meu marido. Acho que detesta mesmo é o Leo. A serraria é uma desculpa. Max tem ciúme de Leo. Do meu casamento. De mim. Éramos muito apegados até Leo aparecer. Um dia, numa volta da praia, Max me beijou na boca. Os siris se debatendo na cesta. Eu senti pela primeira vez uma alegria coberta de vergonha entardecida e voltamos correndo pra casa. A mãe rezando pra Fátima. Max não deve se lembrar disso. Eu me lembro sempre que vejo beijos nos filmes. Quando Leo me beija na cama não é a mesma coisa. Beijo de marido. Não é igual. Não sei explicar. Assinamos um papel para nos beijar. Um contrato. E você espera receber ou entregar o que está no contrato. O beijo é o carimbo. Não é assim? Max, você é um autônomo, como dizem. Pode vender o que quiser e onde quiser. Não precisa se envergonhar. Você é livre. E a liberdade, neste mundo curto da gente, é uma tocha acesa sobre a cabeça dos justos. Vou fazer o jantar agora e gostaria que você aparecesse. Num barco. Eu queria um barco. Max não sabe disso. Eu sempre quis um barco. E ser feliz. Para Max ser feliz é vender cerveja na praia da Beira. Para Leo, cortar madeira. Feri-la em portas e janelas. Mesas para pobres. Mesas para ricos. Para a Santa Ceia. Você vai aparecer no Natal, Max? Leo não quer fazer um barco pra mim. Diz que não tem tempo. Que com barco é diferente. Ele não sabe cortar madeira em barco. Não sabe pescar. Pegar siri. Não sabe o que é praia. Não sabe o que é um barco desaparecendo aos pedacinhos no mar lá longe. 

Não diga nunca que não vai me ver mais, Max.