19.10.14

Falta muito pouco




Falta muito pouco agora.
Se binocularmos pelo buraco de um formigueiro, nossa tentação será achar que muito ainda falta e tanto. São tantas as galerias de trabalho, as câmeras de fungo e de lixo. As câmeras vazias. E nos veremos ali, soltando a terra para olheiros de ventilação, preparando a comida, fazendo a limpeza, regulando umidade e temperatura, tanto ainda por fazer. Até o dia em que, pelo suspiro do monte mais alto de terra fofa, nossa fome, agora gigantesca e cega, não distinguirá a isca do predador e faltará muito pouco. O prédio ruirá. Com timidez até, diante da nossa sublevação e agonia. O que foi feito dos sentimentos que deixei nos vários prédios por onde habito? Deram a descarga com ampolas de cloro ou uma demão enquanto eu saía apressada com a mala dos melhores dias. A mala que não se vende. Que mantemos guardada na sombra para usos que virão. Escondida das visitas, de nós mesmos. Para que não topemos com ela a cada vez que nos escondemos no seu quarto dos fundos para chorar. Você não acredita que falta pouco e relê livros, soltando a terra trecho por trecho. Não se interrompe para pensar se vale o esforço, apenas segue em frente trabalhando, incorporando folhas ao ninho, incansável, tirando daqui e botando ali, abastecendo suas ilusões de paz, negociando com a eficiência operacional do destino. Coeficiando. Mas eu despertei mais cedo. Meu acabamento está pronto. Por isso sei que falta muito pouco agora. Os dias acontecem como memória. Assim é este. Sem surpresas, só incidentes. Não que eu seja indiferente. Temo a morte como quem vê um filho morto ser carregado para a panela vazia de um formigueiro. Temo a morte como início de uma nova vida, onde legiões de humanos possam estar me esperando lá fora outra vez. Para me alimentar com suas matérias decompostas, me ver crescer, trabalhar e me triturar para novas colônias. Você passa por mim e ergo os olhos das folhas. Sei que não quer perder tempo nas câmeras inúteis do meu pensamento. Você existe e se volta toda para isso. Acompanho os seus gestos, adapto os meus sonhos ao seu corpo suado, suas pernas de muita gente, e sorrio com a sensação. O amor está quase pronto dentro do relógio embrulhado. Falta muito pouco agora.