26.10.14

Sonya





Sonya passa com cuidado pelo fogareiro para não queimar a fralda da camisa, mas o carvão aceso atinge sua calça no joelho.

Começa por uma chama pequena no pano que vai se espalhando em duas direções opostas numa linha reta. Descendo e subindo pela perna.

Sonya lembra bem.  

Seus gritos.

Sonya busca alguém para acudir.

Quer arrancar a calça o mais rápido que pode. Mas é tarde.

Quando a chama enfim consegue ser debelada, Sonya precisa baixar devagar a calça colada em sua pele queimada.

Sonya desce o pano pouco a pouco, centímetro por centímetro. Junto com a calça sua pele vai saindo também.

A pele em linha reta.

Uma avenida de carne viva do alto da coxa ao peito do pé.

Sonya lembra.

Não lembra da dor.

A calça é azul-escura. Sintética.

O fogo era o que os animais conhecem e temem.

E havia uma música.

Prelúdio e fuga.

Sonya vira lentamente a cabeça para o céu.

Varsóvia.

Ela reconhece aquele céu entre todos os outros dispostos ao seu lado. Reconheceria até de olhos fechados.

A linha reta em carne viva é uma fila de corpos.

Sonya está entre vozes e corpos empurram o seu.

Quer proteger a perna mas a ferida não há mais.

É o estômago que arde. Que cola em suas costas. Que não sai de dentro dela. Que não pode ser apagado.

O sonho indica o caminho quando ela não consegue ver mais o passado.

A massa do gás se contrai, se autoaquece e forma o embrião de uma nova estrela. Uma nuvem molecular gigante e assustadora. Quanto mais a nuvem se contrai, mais a temperatura aumenta.

Seu pai está falando das protoestrelas.

Sonya lembra. Uma canção de ninar.

Isto teria uma importância muito maior se fosse vigília, porque todo sonho apaga o sonhador.

No sonho, ela nada pode fazer.

Está paralisada na fila de imagens em sucessão.

Imóvel na rotação em torno do centro, onde a morte está ali -- na sombra.