20.12.14

Saudades de casa





Fools, they do not even know how much more is the half than the whole.
-- Hesíodo

São 4 da manhã ou 5, não sei bem. A lamparina de led está acesa no meu quarto do laboratório de pesquisa aplicada Aquiles, na Antártida. Meu grupo de trabalho estuda algas, mas a esta hora do dia e depois de todo o cansaço de mais uma jornada de trabalho, não é bem para algas que volto minha atenção. Este cérebro está aberto na minha tela e o estudo enquanto os minutos passam. Duas fatias de um estranho pão de hambúrguer de barro, eu diria. Ou corpos humanos malformados, nus e aconchegados uns nos outros sem propriamente uma cabeça que os lidere. A cabeça foi retirada como uma casca de noz. É o fora. O que não se vê. O espaço sideral contido na gaveta de um deus. Corpos humanos, ou apenas corpos, embolados numa vala comum de conexões há muito desativadas e banhadas em formol. Um belo vaso fenício. É o que trazemos dentro de nós. O que me faz pensar e ver minha mesa iluminada com meus cacarecos de serviço. Anotações e cálculos. O que eu poderia colocar entre uma fatia e outra que poderia levar este cérebro a operar novamente? Não algas, por certo. Os seres deitados, essa massa modelada, formam um labirinto. Procuro a saída por suas vielas tortas. As vielas dão umas nas outras num circuito fechado, restrito. Entre um hemisfério e outro, há uma beira de abismo, você pode pular. Não vejo perigo aí. Distância curta. Como quem salta de uma poltrona a outra de uma sala de estar convencional. Por mais que eu olhe a imagem, só vejo corpos jogados, estirados em sua imperfeição. Fetos inconclusos. Imagino também que alguém tirou esta foto da cabine de um avião sobrevoando uma pequena extensão de floresta verde. Cinza, no caso. Qualquer um poderá ver muitas coisas nesta peça e até esquecer que se trata de um cérebro humano. De uma identidade desaparecida. De um ser vivo que carregou dentro de si dezenas de corpos de outros seres não nascidos. Que dormem. Dormem e quem sabe pensam ainda depois do seu alfa morto. O centro de comando. Pensam no seu alfa morto e imóvel no formol. Nesta foto. Na minha tela. Pensam nos motivos que levaram o alfa a deixá-los à míngua, em risco, quando estavam ainda em processo de desenvolvimento para saírem da caixa, da casa, da cápsula, dos hemisférios. Teria o alfa morrido para não deixar que eles nascessem? Estaria programado nas células do centro de comando este autoabortar ou mais uma vez o acaso se impôs? O deus, como chamam. Esses filamentos, essas partes de um eu, desejavam ter suas próprias conexões independentes para desligarem-se do mestre num futuro próximo? Mas eles formavam o mestre! Cada partícula do centro de comando. Posso concluir pelo cansaço que há um suicídio biológico programado aí. Que bobagem. Filme B. O todo eliminando as partes para que não se tranformem em outros todos. Minhas especulações bobas andam em círculos e me sinto numa roda de criança. Eu não deveria estar perdendo um precioso tempo de sono para ficar olhando lobos cerebrais. Não é minha área de especialização. Depois de tantos anos analisando algas, não esperava que um cérebro humano pudesse me chamar de tão longe. Talvez eu queira apenas passear por estas vielas. Aqui, em minha cápsula, neste hemisfério, sinto saudades de casa.