12.3.16

Há algo de suicida em ser homem ou mulher





Eu nasci homem. Se é que isso importa no fim das contas. Fisiologicamente homem. Mas mentalmente não me pergunte. Eu não saberia responder. Assuntos de homem não me interessam. Assuntos de mulher não me interessam. Todos os assuntos me são desprovidos de gênero. Quem olha para mim diz que sou mulher. Eu me convenço disso. Olho no espelho e vejo uma mulher. Olho meu corpo e sinto uma mulher. Eu nasci mulher. Se é que isso me importe. Não sei definir o sexo de uma mosca, uma lagartixa, como poderia definir o meu se minha sexualidade é um jogo de encaixe? As mesmas peças fazendo modelos diferentes. Palácios transparentes. Eu me deixo falar sem ouvir. A materialidade da minha voz sobrevoa o cais do porto e mergulha para pegar o peixe que nem viu, mas sabe que ali está por instinto. Pelo ar que brande as cordas. A voz come as palavras. Voracidade e doçura. Não sou homem nem mulher. E como tudo isso parece longe. Eu poderia dizê-los e ocupar páginas. Mas tem uma hora em que a trilha acaba e minhas mãos param sobre o teclado. Largam a caneta. Pousam o copo. Esticam as pernas. Me deito e sinto o meu corpo. Embora a cabeça mande. Obedeça. Você é o que a voz lhe dirá. A voz terna, a voz dura. A voz nenhuma. O gesto feminino da mão de um homem. O suor masculino de mãos femininas em silêncio. É uma chuva pesada que torna tudo invisível, incorpóreo. As pedras da rua não estão mais ali. Querem que eu defina. Não posso. Querem que eu use a palavra certa. Ninguém sabe. Não sou a guardiã dos meus pensamentos. Essa porta pesada não tem tranca. E há muito barulho lá dentro. De homens e mulheres em um fim de festa. Eu não posso levar todos para minha casa. Só um de cada vez. A cada minuto. O ponto de ônibus está cheio e farei muitas viagens. Em túneis sem luz. Em curvas de abismos. De mão única. Nesse ônibus vão homens e mulheres sonolentos e cansados. Eles nasceram homens. Elas nasceram mulheres. Eu aperto o acelerador até o fim. Olhe o sol se pondo. Mal sabendo que terá de se pôr muitas vezes, que será obrigado a se pôr muitas vezes para uma natureza que se usa de vez em quando para acreditar e jogar fora. E como uma mulher deve se pôr perante si mesma? Como um homem deve se pôr perante si mesmo? Há poltronas sem número. Corpos sem identificação. Mas eles confiam no espelho. E o que todos veem é o espelho. Eu nasci espelho. Fisiologicamente espelho. Mentalmente espelho. No retrovisor tudo o que os outros me dizem que sou. Mas eu já estou longe. Olho sem ver e escovo os dentes. Que não se importam. São dentes. Uma boca. Dois olhos materialmente iguais a todos os outros. Forçados a interpretar, a julgar, a esquecer, a não deixar que o café esfrie. O corpo esfrie. Há algo de suicida em ser homem ou mulher.