10.3.16

Tenho um princípio de gripe e quatro caixas de alprazolam




Tenho um princípio de gripe e quatro caixas de alprazolam. São seis horas da manhã, a camiseta e a calcinha grampeando o meu corpo sobre uma cadeira giratória que me prende a circulação. Trabalho sentada, você pode ver o meu problema, ter de me levantar para andar vez  por outra quando estou completamente concentrada, não rola. Acordo com o maxilar dolorido, devo trincá-lo durante o sono ou então beijei demais ontem, escolha. Não sei por que você se preocupa tanto com o seu romance. Ou melhor, sei, você é poeta e a editora quer um romance. Você é poeta e a editora quer um romance, isso pode estar começando errado. Junte tudo que é seu, ache um fio condutor, encha de cotidianidades entre uma unidade e outra, ligando-as como cimento. O personagem é você e alguns inimigos, um amor perdido, você na rolagem de sentimentos antigos e recém-descobertos enquanto anda por aqui e ali, descreva o seu quarto mil vezes, dilate as palavras, fale até do café quente que desce pela garganta, dos maços de cigarros amassados no chão. Duzentas páginas está bom. Era para eu falar de mim. Isso não tem o menor significado, escrevo porque preciso falar com você depois das palavras duras que trocamos semana passada. Escrevo para marcar território. Você não aparece mais nos meus sonhos. Eu posso xerocar os Diários de Sylvia Plath pra você. Sylvia Plath está esgotada. Você não vai querer pagar 400 paus por uma Plath velha e rabiscada. Estão fazendo uma obra atrás de mim. É tanto barulho que parece que constroem um Parthenon. Gritos e marteladas na bigorna, veja o meu humor como está. O cérebro sendo punçado, é assim que me sinto. Para variar, responda-me. O homem chegou à Lua sim. Você não costumava duvidar de tudo quando nos conhecemos. Uma alma com dúvida é uma alma, porra não sei como dizer sem chatear você. Estou tirando fotos de prédios. Reservo um dia da semana para isso. Prédios em ruínas. Não é um projeto, é uma vontade. Sabe aquelas caixas de lenços de papel na mesa dos psiquiatras? É para chorar. Eu olho e me dá vontade de chorar só para secar as lágrimas com eles. Acho que fazem de propósito. Olha eu duvidando de tudo como você. Decidi não fazer mais exames de rotina. Vamos ver o que acontece. Tem uma mulher que fica me mandando fotos de suas costas chicoteadas. Eu nem a conheço, deve achar que me excito. Ou que sou imbecil, porque as marcas são todas falsas, pintadas. O amor é um tipo de imagem. São correntes de troca mútua baseadas num primado. Você vê o que quer ver. O que pode ver. Se a imagem do seu pensamento não estiver ali, pode ser que não interesse. É como viver dentro de uma música. Falar debaixo d'água. Quando fumo kif desando para filosofias de peixaria. Jabuti sabe lê, não sabe escrevê, trepa no pau, não sabe descê, lê, lê. Por que você fica arrumando inquérito comigo? Eu nem uso essa expressão, veja só. Você diz que sou uma pessoa presa num quarto cheio de ovos. Ninguém chega a mim, e eu não consigo sair, sem quebrá-los. Nem parece que nasceste no Largo da Viração. Todo escritor é um vigarista. De conto-do-vigário. Me venderam uma passagem ao Marrocos pelo dobro do preço, alegando que sairia quase de graça. Quando fui pagar, já estava dentro do avião. Era tarde. Quase o esfaqueei com minha kukri durante uma sessão de chá de menta e muita madame tranquila à sombra de uma figueira. Tudo que entrar no balde pode fumar. Tudo que entrar no balde pode escrever. O resto é o cheiro doce da evaporação. A literatura e a arte contemporâneas são o aformoseamento de desinteligências, me apaixonei no ato, sabe? Por nada. Por frases. Por poesias óticas. A poesia é um coador. E viva a praça São Salvador. Vivam as poetas que me mandam poemas e depois pedem de volta, como se eu os possuísse, como se pudesse comê-los. Escreva um romance. Você não apareceu no sindicato na segunda-feira. Está com medo de ser vista? De perder o emprego? De ser arrivista? Não tema, lê-lê. As moscas nem podem mais tirar uma soneca, porque a merda é tanta. Conceito, percepto, afecto. Fica difícil, não é? Minha cadeira precisa de outro pé.