Tarkovski está em San Gregorio. Anos 80. O braço
apoiado na guarda da cama, ele olha para a direita. Alguém ou uma janela. O
quarto rosa-escuro é o mesmo da sua casa. O colchão de molas é o mesmo que me
dava dores na coluna e medo do som de folhas arrastadas pelo vento na madrugada
de sua cidade. Há uma pequena foto presa na parede ao lado da cama. Amanhã
passearemos na beira da sua praia. Uma areia lamacenta. O calçadão de
amendoeiras. Sentamos no banco. Uma sombra. Eu seguro os óculos na mão porque
quero ver você bem de perto. Nessa época, você e Andrei usavam o mesmo modelo de bigode.
Você me conta histórias que mal ouço. Dos livros que corrigiu. Do rapaz que
conheceu. Eu penso nas duas vezes em que quase morremos juntos. O carro sem
freio. O tiroteio no bar. A exposição de Maria. O seu corpo bem-feito no judogi
branco. O tempo que passamos brigados por pura vaidade até você me escrever uma
carta apaixonada de amizade pedindo para voltarmos. Você chegando de surpresa
naquele dia em que eu estava sozinha na cachoeira. Atrás de Andrei uma antiga
penteadeira como a da sua avó. Enfeitada de bibelôs amarelecidos que me dão uma
angústia sem paradeiro. O cinzeiro da Panair na mesinha de cabeceira. O barulho
dos talheres soltos na gaveta da cozinha. A casa que cerca nossas conversas, a
camisa quadriculada de Andrei e o guarda-roupa de espelhos, não sei se ainda
está de pé. Eu comprei um onibusinho amarelo que nem deu tempo de te dar. Ainda
canto aquela canção de amor que você compôs na adolescência. Abraçados na
jukebox, com quem mais cantaremos músicas bregas que só nos dois gostávamos? Você não sabe, mas o lodo da sua
areia foi todo coberto de mais areia. Toneladas. Assim li nos jornais. A cidade
celebrou o acontecimento. O pântano sufocado. Hoje moro numa casa que você não
vai conhecer. Nós nos esticávamos por cima do seu muro e víamos o mar. Um muro
que você não conseguiu pular para se salvar.