22.8.17

O poeta se rende






O amigo chega por trás, curva-se e abraça o poeta. O poeta sentado. Lentes embaçadas, ele abaixa a cabeça. O abraço, uma gravata. Não a "gravata chamejante de Neruda", consideração do poema. O braço direito do amigo aperta seu pescoço. O poeta se rende. Nada faz além de proteger a garganta com o queixo. A velha garrafa de Antarctica espera que o calor passe. À mesa, três copos sujos vazios. Guardanapos. Ao lado direito do poeta, um bloco comanda para anotações de apoio. Daqui não podemos ouvir o que o amigo diz ao seu ouvido. Há um rastro de sorriso nos lábios do esganado. Uma garrafa de vodca evapora. Não nos deixa ver seu rótulo. O que o poeta está fazendo com as mãos ocultas pelo vidro. E o que vejo como sombra pode ser líquido derramado, rotina das mesas. Eles não se parecem. Se eu estivesse no poeta, não pensaria no abraço, no amigo, naquele afeto noturno e confessional, pensaria nas garrafas tão secas, quanto tempo demoraria livrar-me daquele humano calor nas costas que me imobiliza. O suéter de lã que envolve os ombros do amigo pinica meu rosto e o que passa por perto. O poeta não se importa, são palavras carinhosas o que ouve. Profundamente romântica, a gravata não cede. São minutos intermináveis de suor e de mil novecentos e oitenta e dois. De mangas arregaçadas. Estamos na casa de alguém, onde se bebe barato e se cai no sofá indiferente mais próximo. Não há nada nas paredes que a mesa prende. Outro amigo fuma e procura não ouvir o que poetas ouvem. Ele ouve um caminhão azul que passa na estrada de um filme de Duras. O céu pálido dos invernos. O caminhão aparece e desaparece. Não há uma linha. Transporta corpos. Eu subo no caminhão. Meu bloco está em branco. A falta de ar está em branco. Eu ainda sorrio aos conselhos dos que sussurram.