Só pelo som, sei qual
dos meus cães está bebendo água.
Qual dos meus amigos vem vindo pela casa.
Que revólver você engatilhou depois desistiu.
Qual dos meus amigos vem vindo pela casa.
Que revólver você engatilhou depois desistiu.
Sentada na mureta do MAM, acompanho
as baratas d’água correndo pelas pedras abaixo de nós. Você
fala do papel da mulher na literatura helenística, diz Helena, Briseida, Nausícaa, Penélope, dá um salto até as grandes damas dos salões de arte poética e,
pelos gestos mansos das mãos ao dizê-lo, entendo toda a passagem do
tempo até aqui. Não quero fazer um comentário rococó ou burro para não
estragar sua performance, então acompanho estática as mudanças de dourado do pôr do sol refletidas
nos seus olhos. É um espetáculo demolidor. Na parte de Leonor de Aquitânia
sucumbo, não ouço nada além do maravilhamento. Comento moído para fingir minha máxima atenção – não quero entristecer ninguém, nem as baratas do museu. Esperamos ali que passe a sessão das
oito. Quando por fim anoitece, você diz política e não olha mais nos meus
olhos. Sempre que fala política não olha nos meus olhos. Eu poderia alertá-la
para isso, me calo. Deixo-a cabisbaixa e não sei mais o que seus olhos
refletem. Escrevo nas páginas em branco de uma boneca que peguei na gráfica hoje à tarde, você conversa com seu amigo sobre o filme que acabamos de ver e esqueci. Escrevo devagar para não parecer febril. Quando ergo os
olhos, modulo uma concordância, sorrio para não parecer antipática, pior,
sombria. A produção de arte é muito importante para você. Seu amigo é muito
importante para você. Você é muito importante para mim. Telêmaco será um rapaz
de sorte, e se não for. A costura do livro é frágil, seguro com cuidado para que
as páginas não fujam. Para o meu amor, a experiência da arte é o baluarte contra
o caos. Risco – trincheira contra o caos. Faço um traço – religião,
sintoma físico. Não estou muito --- hoje. A flor da pele espanta as
palavras certas, acho que é isso, se não for. Sentimento demais destrambelha o pulso,
chocalha o sangue. Os minutos correm como as baratas e corro com eles, perco o
que dizer. Já estou pensando em outra coisa – cabras correndo pela encosta, a
chuva de todas as idades, tentáculos urbanos, aniquilamento. Se pelo menos eu
conseguisse uma linha reta. No silêncio seguinte, você para de repente e descreve um sorriso de olhos brilhantes – o exemplo concreto da música. O livro se
dissolve.