7.4.21

Peregrina

 

Estou dentro do táxi com meus dois filhos.

Irineu ao lado do motorista. Irene ao meu lado segurando minhas mãos.

Sei para onde me levam.

Hoje é o meu dia de vacinação e Irene não segura. Ela aperta minhas mãos como se eu fosse o cachorro aterrorizado que vai arrojar-se pela janela na primeira oportunidade do freio.

Irene tem belas mãos, sebosas mas belas. Bem torneadas para combinar com as preciosas joias que me pediu no dia do seu casamento e não devolveu.

Minhas mãos são enrugadas, enrugadas como alguém que sorri, enrugadas mas limpas. Desanuviadas.

Vejo a paisagem lá fora, a nuca do motorista e a nuca do meu filho. Se é que podemos chamar de paisagem prédios encardidos, ônibus fumegantes, terrenos de lodo e um tropel de faces desesperadas. O odor do futuro.

Irineu continua com seu velho hábito de limpar o nariz com o indicador durante percursos de táxi. Evito sair com ele. É tão compulsivo que o taxista o encara enojado, o que já é uma lisonja. Irineu arriou a máscara para melhor desfrutar o seu gozo.

Irene não é diferente. Durante as aulas no colégio limpava o nariz nos cabelos náiades da colega a sua frente. Em silêncio astucioso. Fui chamada na diretoria várias vezes. Não sei se continua com esta rotina apesar de toda a educação formal que lhe dei. A psicóloga disse que minha filha estava expiando sua angústia de endoutrinamento. Não encontrei referência a essa moléstia em nenhum manual de psiquismo moderno. Paciência.

O trânsito é lento. O carro segue lá para a puta que pariu da cidade porque perto de casa não há nenhum posto. Irineu e Irene não conversam. Lançam-me olhares eventuais mas fecho os olhos antes que me atinjam. Despisto curiosidades. Não quero arrazoar. Se estou tomando a esperança deles nos remédios, se faço meus  exercícios, se exponho-me ao sol e outras lengas. A torta de brócolis que Irene me deu foi parar sem rodeios na lata de lixo. Ela pensa que me deleito com essas porcarias que nem às moscas seduzem. Liguei para a Txuleta e pedi um javali.

Estou indo me vacinar. Espero escapar com vida. Que pelo menos me inoculem soro no deltoide em vez de ar na veia. Por mim eu não tomava a merda de vacina nenhuma, mas meus filhos -- meus caçadores -- querem que eu viva e sobreviva copiosamente para poderem me infernizar mais. Meus antigos sucessos são sua fonte de nutrição.

Quatro horas depois, entro na casa sossegada e arranco a máscara. Escoro minha felicidade. Que reclusão é esta que estou em flor? Por onde estou, já sou outra. Há um alívio em meu peito, não posso negar. Irineu e Irene me deixarão em paz até o dia da segunda dose. Tomo um banho sequioso apoiada na barra de segurança. Faço dez flexões e na undécima incorporo a Peregrina. Personagem principal de “Enganos do Bosque, Desenganos do Rio”, a alegoria de Sóror Maria do Céu que estou adaptando babilonicamente ex machina para o meu retorno triunfal aos palcos. Escondo-me deste país peregrina.