Estou dentro do táxi com meus dois filhos.
Irineu ao lado do motorista. Irene ao meu lado segurando minhas
mãos.
Sei para onde me levam.
Hoje é o meu dia de vacinação e
Irene não segura. Ela aperta minhas mãos como se eu fosse o cachorro aterrorizado
que vai arrojar-se pela janela na primeira oportunidade do freio.
Irene tem belas mãos, sebosas mas
belas. Bem torneadas para combinar com as preciosas joias que me pediu no dia
do seu casamento e não devolveu.
Minhas mãos são enrugadas,
enrugadas como alguém que sorri, enrugadas mas limpas. Desanuviadas.
Vejo a paisagem lá fora, a nuca
do motorista e a nuca do meu filho. Se é que podemos chamar de paisagem prédios
encardidos, ônibus fumegantes, terrenos de lodo e um tropel de faces
desesperadas. O odor do futuro.
Irineu continua com seu velho
hábito de limpar o nariz com o indicador durante percursos de táxi. Evito sair
com ele. É tão compulsivo que o taxista o encara enojado, o que já é uma
lisonja. Irineu arriou a máscara para melhor desfrutar o seu gozo.
Irene não é diferente. Durante as
aulas no colégio limpava o nariz nos cabelos náiades da colega a sua frente. Em
silêncio astucioso. Fui chamada na diretoria várias vezes. Não sei se continua
com esta rotina apesar de toda a educação formal que lhe dei. A psicóloga disse
que minha filha estava expiando sua angústia de endoutrinamento. Não encontrei
referência a essa moléstia em nenhum manual de psiquismo moderno. Paciência.
O trânsito é lento. O carro segue
lá para a puta que pariu da cidade porque perto de casa não há nenhum posto.
Irineu e Irene não conversam. Lançam-me olhares eventuais mas fecho os olhos
antes que me atinjam. Despisto curiosidades. Não quero arrazoar. Se estou
tomando a esperança deles nos remédios, se faço meus exercícios, se exponho-me ao sol e outras lengas.
A torta de brócolis que Irene me deu foi parar sem rodeios na lata de lixo. Ela
pensa que me deleito com essas porcarias que nem às moscas seduzem. Liguei para
a Txuleta e pedi um javali.
Estou indo me vacinar. Espero
escapar com vida. Que pelo menos me inoculem soro no deltoide em vez de ar na
veia. Por mim eu não tomava a merda de vacina nenhuma, mas meus filhos -- meus
caçadores -- querem que eu viva e sobreviva copiosamente para poderem me
infernizar mais. Meus antigos sucessos são sua fonte de nutrição.
Quatro horas depois, entro na
casa sossegada e arranco a máscara. Escoro minha felicidade. Que reclusão é
esta que estou em flor? Por onde estou, já sou outra. Há um alívio em meu
peito, não posso negar. Irineu e Irene me deixarão em paz até o dia da segunda
dose. Tomo um banho sequioso apoiada na barra de segurança. Faço dez flexões e
na undécima incorporo a Peregrina. Personagem principal de “Enganos do Bosque,
Desenganos do Rio”, a alegoria de Sóror Maria do Céu que estou adaptando babilonicamente
ex machina para o meu retorno triunfal aos palcos. Escondo-me deste país
peregrina.