Adorei a sua ideia de dar continuidade ao meu tratamento por e-mail. Não
faz sentido mesmo interrompermos as sessões só porque me mudei para Manaus.
Confesso que a princípio cheguei a procurar alguns terapeutas locais que me
foram indicados. Tive entrevistas com quatro. Dois não aceitaram meu caso, por
motivos que não explicaram bem, ou eu não entendi direito, e alegando agenda
cheia. O terceiro não teve pudores de me dizer que não trabalhava com
"estados limites" e o quarto, bem, o quarto tinha mau hálito e seu
consultório, além de todo decorado segundo os cânones do feng-shui, exalava um
odor nauseabundo de incenso de jasmim. O senhor bem sabe como abomino essas
coisas, esses "territórios marcados". Então, como vê, foram
tentativas vãs. E também,
cá entre nós, só de pensar em um recomeço, ter de contar toda a lenga-lenga da
minha infância de novo, é um atropelo. (Um chip com o meu dox psicológico nos
pouparia muito tempo enfadonho.) Depois de cinco anos me tratando com o senhor,
quem mais teria um know-how tão perfeito das combinações de meus pensamentos?
Falando em pensar, estou aqui teclando e imaginando o que o senhor deve estar
achando das coisas que digo, imagino o seu rosto, os olhos apertados, o
cavanhaque bem-aparado onde o senhor apoia o polegar e o indicador enquanto me
escuta/lê. Imagino que um dia possa vir a
se arrepender de fazer essa análise eletrônica. Que dessa forma eu posso
ludibriá-lo mais do que já o fiz de corpo presente. Que posso fazer literatura
barata dos meus fenômenos psíquicos e no fim das contas nada lhe servirá como
material empírico. Que minha degeneração intelectual, moral e afetiva corre o
risco de se revelar mais obscura ainda, nos distanciando do processo de
"cura". Que, por fim, minha "tendência à distração" seja
contagiosa e o senhor próprio acabe
caindo na superficialidade dos laços que a virtualidade desse suporte
infalivelmente impõe, num processo de contratransferência veramente curioso.
Penso essas coisas enquanto lhe escrevo e ao mesmo tempo tento convencer-me de
que não devemos temer a incursão em domínios estranhos, eu mesma uma prova viva
da estranheza. Tenho custado a dormir, doutor, fico rolando na cama e fazendo associações,
justaposições e incorporações de palavras, ideias e personagens num fluxo
compulsivo até o amanhecer, quando enfim desmaio por apatia ou cansaço. Não dá
mais para convencer ninguém de que meu desencadeamento de conteúdos é uma forma
de estilo ou que tenha qualidade literária. Mas não consigo evitar. Parece que,
como eu, tudo o que escrevo tem de seguir o caminho do isolamento associativo.
Não é novidade para o senhor, que me
conhece sem eu precisar falar, pois tudo está registrado nos compêndios de
psicanálise. O senhor só precisa achar a página certa. Como combinamos,
envio-lhe em anexo o meu material para o estudo de caso. Bom, essa e-therapy
(minhas amigas morrem de inveja) de hoje já está se alongando e devo me
despedir pois não quero tomar muito o seu tempo. (Uma dúvida: devo passar a
chamar agora o meu id de “isso” e o
superego de “supereu”? Se é para deslatinizar geral, a forma correta não seria
“sobre-eu”?) Antes de concluir, no entanto, permita-me um último comentário:
enquanto lhe escrevia este e-mail, me peguei várias vezes olhando fixamente
para o cinzeiro em minha mesa. Suponho que o cinzeiro seja meu, mas não me
lembro de como veio parar aqui, se ganhei de presente, se comprei num belchior,
não importa. É um cinzeiro assinado, pertenceu a Afranio de Mello Franco, pois este nome está gravado na porcelana logo
abaixo de uma citação de Kant e é ali que eu deposito minhas cinzas. Sim, apago
o cigarro nas letras de Kant, que, à medida que fumo, vão sumindo na porcelana.
Depois de apagar um único cigarro no cinzeiro limpo, por exemplo, posso ler
assim:
"Duas coisas preenchem o ânimo co adm ção e respeito
sempr novos e crescente quanto ais frequente e duradour or o tempo que pens
ento dispensa com elas. O céu estrela sobre e a lei moral d tro de m."
O senhor conhece esta citação? Eu conheço, pois sou eu que limpo o
cinzeiro. Podemos discutir o significado dessa passagem do cinzeiro mais
detalhadamente num próximo e-mail. Sem cinzas.
Um grande abraço,
Dora