3.10.07

Meu caro doutor




Adorei a sua ideia de dar continuidade ao meu tratamento por e-mail. Não faz sentido mesmo interrompermos as sessões só porque me mudei para Manaus. Confesso que a princípio cheguei a procurar alguns terapeutas locais que me foram indicados. Tive entrevistas com quatro. Dois não aceitaram meu caso, por motivos que não explicaram bem, ou eu não entendi direito, e alegando agenda cheia. O terceiro não teve pudores de me dizer que não trabalhava com "estados limites" e o quarto, bem, o quarto tinha mau hálito e seu consultório, além de todo decorado segundo os cânones do feng-shui, exalava um odor nauseabundo de incenso de jasmim. O senhor bem sabe como abomino essas coisas, esses "territórios marcados". Então, como vê, foram tentativas vãs. E também, cá entre nós, só de pensar em um recomeço, ter de contar toda a lenga-lenga da minha infância de novo, é um atropelo. (Um chip com o meu dox psicológico nos pouparia muito tempo enfadonho.) Depois de cinco anos me tratando com o senhor, quem mais teria um know-how tão perfeito das combinações de meus pensamentos? Falando em pensar, estou aqui teclando e imaginando o que o senhor deve estar achando das coisas que digo, imagino o seu rosto, os olhos apertados, o cavanhaque bem-aparado onde o senhor apoia o polegar e o indicador enquanto me escuta/lê. Imagino que um dia possa vir a se arrepender de fazer essa análise eletrônica. Que dessa forma eu posso ludibriá-lo mais do que já o fiz de corpo presente. Que posso fazer literatura barata dos meus fenômenos psíquicos e no fim das contas nada lhe servirá como material empírico. Que minha degeneração intelectual, moral e afetiva corre o risco de se revelar mais obscura ainda, nos distanciando do processo de "cura". Que, por fim, minha "tendência à distração" seja contagiosa e o senhor próprio acabe caindo na superficialidade dos laços que a virtualidade desse suporte infalivelmente impõe, num processo de contratransferência veramente curioso. Penso essas coisas enquanto lhe escrevo e ao mesmo tempo tento convencer-me de que não devemos temer a incursão em domínios estranhos, eu mesma uma prova viva da estranheza. Tenho custado a dormir, doutor, fico rolando na cama e fazendo associações, justaposições e incorporações de palavras, ideias e personagens num fluxo compulsivo até o amanhecer, quando enfim desmaio por apatia ou cansaço. Não dá mais para convencer ninguém de que meu desencadeamento de conteúdos é uma forma de estilo ou que tenha qualidade literária. Mas não consigo evitar. Parece que, como eu, tudo o que escrevo tem de seguir o caminho do isolamento associativo. Não é novidade para o senhor, que me conhece sem eu precisar falar, pois tudo está registrado nos compêndios de psicanálise. O senhor só precisa achar a página certa. Como combinamos, envio-lhe em anexo o meu material para o estudo de caso. Bom, essa e-therapy (minhas amigas morrem de inveja) de hoje já está se alongando e devo me despedir pois não quero tomar muito o seu tempo. (Uma dúvida: devo passar a chamar agora o meu id de “isso” e o superego de “supereu”? Se é para deslatinizar geral, a forma correta não seria “sobre-eu”?) Antes de concluir, no entanto, permita-me um último comentário: enquanto lhe escrevia este e-mail, me peguei várias vezes olhando fixamente para o cinzeiro em minha mesa. Suponho que o cinzeiro seja meu, mas não me lembro de como veio parar aqui, se ganhei de presente, se comprei num belchior, não importa. É um cinzeiro assinado, pertenceu a Afranio de Mello Franco, pois este nome está gravado na porcelana logo abaixo de uma citação de Kant e é ali que eu deposito minhas cinzas. Sim, apago o cigarro nas letras de Kant, que, à medida que fumo, vão sumindo na porcelana. Depois de apagar um único cigarro no cinzeiro limpo, por exemplo, posso ler assim:

"Duas coisas preenchem o ânimo co adm ção e respeito sempr novos e crescente quanto ais frequente e duradour or o tempo que pens ento dispensa com elas. O céu estrela sobre e a lei moral d tro de m."

O senhor conhece esta citação? Eu conheço, pois sou eu que limpo o cinzeiro. Podemos discutir o significado dessa passagem do cinzeiro mais detalhadamente num próximo e-mail. Sem cinzas.

Um grande abraço,
Dora