30.12.09

Ester






Exatamente às seis e treze da manhã vi os enormes olhos azuis de Ester sendo vendidos em um anúncio de jornal que acabara de comprar. Eles falavam comigo. Águas amargas. Pálidos. Afásicos. Testes de minha instabilidade emocional. Ela não tardou em vendê-los a qualquer um sem me consultar. E logo eu, que os escolhi para ela. Minha herança genética. Agulha rangendo na memória.

Como nascem os bebês, papai?

O bico da cegonha é o pênis. A chaminé por onde ela desce, a vagina. E o lago de onde viestes são as águas do ventre materno.

Ester piscou os olhos azuis e nunca mais os abriu, com medo de que a cegonha os bicasse e levasse de volta ao fundo do lago. Juntando um ano ao outro e cansada de viver de olhos fechados, ela arrancou-os com a pinça das sobrancelhas de Occam e deixou-os expostos num cesto de junco sobre a mesa de mármore Travertino Romano de nossa sala.

O primeiro interessado apareceu às nove horas, conforme o anúncio. A velha queria olhos jovens. Cristalinos. Queixou-se de que pareciam mortos. E barganhou.

Eles não estão mortos, disse Ester. Eles dormem.

Ester despachou-a. E a um segundo, terceiro e quarto. Passai bem.

Na undécima hora, um rapaz de passos acidentais veio do fim da rua e bateu à nossa porta. Ester ergueu o rosto. Obscuro por obscuro. Farejou-o, sorriu como se não sorrisse e entregou-lhe seus olhos azuis numa caixinha dourada. O rapaz guardou-os no bolso do paletó, separando-se de nós e do resto da história.

Ester suspirou, veio a mim e deitou em minhas mãos o pagamento. Dois feijões brancos de olhos pretos.

Pega e coloca em ti, anda, ela disse.

Eu te daria duzentas cabras, vinte bodes, duzentas ovelhas, vinte carneiros, trinta camelos, quarenta vacas, dez touros, vinte jumentos e dez mulas. Por que fizeste isso?

Ester retirou os óculos escuros e pela primeira vez deixou-me ver suas órbitas vazadas.

Porque tudo merece um novo olhar, meu pai.







25.9.09

haicai da terceira idade



hashis entrecruzados
um último fio de cabelo
cai na sopa de missô







Laboratório de criação literária


Nossa proposta de trabalho tem como foco principal transformações químicas da estrutura do a-Bisabolol com finalidade de potencializar e/ou expandir suas atividades biológicas e aplicações tanto na indústria em geral como na indústria do texto literário. O α-Bisabolol, conhecido como levomenol, é um óleo viscoso incolor de aroma agradável, odor floral e baixa toxicidade estereotípica (LD50 em animais=13-14 g/kg). É praticamente insolúvel em água e glicerina, e solúvel em etanol. Ocorre na natureza nas formas enantioméricas (+) e (-), sendo o enantiomêro (-) o de maior abundância. O (-)-a-Bisabolol é um composto natural com estrutura de um álcool sesquiterpênico monocíclico, sendo no Brasil extraído da madeira da candeia. O óleo de candeia tem aproximadamente 85% de α-Bisabolol, portanto uma concentração elevada para produto natural. Destilando-se o óleo de candeia obtém-se α-Bisabolol com pureza mínima de 95%. O interesse no α-Bisabolol se deve a suas atividades biológicas comprovadas, bem como a sua disponibilidade e facilidade de extração. Em função da sua baixa toxicidade e de suas propriedades conhecidas como anti-irritante, anti-inflamatória, protetor gástrico, analgésica, antibiótica, antimicrobiana e antirromanesca, é muito usado em cosméticos como loção pós-barba, loções hidratantes, desodorantes, batons, protetores solares, cremes para as mãos e recursos estilísticos da arte escrita, entre outros. Recentes estudos biolinguísticos indicam que o a-Bisabolol é um inibidor para o glioma (tumor maligno) e floreios de retórica em ratos e humanos. Estudos do (-)-a-Bisabolol como fungicida o indicaram como o fungicida do futuro, evitando males físicos e a contaminação de uns escritores pelos outros. Provavelmente devido às dificuldades de trabalhar com a estrutura química deste composto, a literatura consultada é muito pobre sobre modificações do (-)-a-Bisabolol. A reação proposta deve ocorrer nas duas duplas ligações do (-)-a-Bisabolol, formando assim o diclorocarbeno, ou foco narrativo. A ideia de modificá-la desta forma se baseia no fato de obtermos um produto mais reativo que nosso reagente de partida. Para essa etapa do trabalho reagiu-se 4,4 mmol de Bisabolol, 0,044 mmol de N-Cetil-N,N,N-Trimetil Amônio e 27 mmol de clorofórmio, a mistura foi homogeneizada por 10 minutos sob vigorosa agitação exegética. Então foram adicionados, gota a gota, 44,4 mmol de solução de hidróxido de sódio a 50%, concluída a adição a reação foi aquecida a 50°C, e mantida sob agitação close-reading por mais duas horas. Terminado esse tempo, a temperatura foi reduzida à temperatura ambiente e adicionou-se 50ml de solução de ácido sulfúrico a 10% a fim de tornar o meio ácido e sofístico. A extração é realizada com 50ml de diclorometano. A camada organocanônica foi lavada com água e seca com sulfato de sódio anidro. O solvente foi evaporado, sob vácuo, em evaporador rotativo. A reação foi monitorada por CCF utilizando cromatoplacas de sílica sobre alumínio, sendo possível ver o desaparecimento do (-)-α -Bisabolol quando revelado em vapor de iodo e em solução reveladora de sulfato cério, usando diclorometano como eluente. Obteve-se rendimento bruto de aproximadamente 99%. O diclorocarbeno purificado (poetria) foi caracterizado por infravermelho e ressonância magnética nuclear de próton e carbono.

20.9.09

A história das cem palavras



Era uma vez uma história de cem palavras. Nove dez onze, doze treze quatorze quinze dezesseis. Dezessete dezoito dezenove vinte, vinte e um vinte e dois: vinte e três vinte e quatro vinte e cinco vinte e seis vinte e sete vinte e oito. Vinte e nove trinta trinta e um trinta e dois trinta e três, trinta e quatro trinta e cinco. Trinta e seis trinta e sete trinta e oito trinta e nove quarenta! Quarenta e um. Quarenta e dois? Quarenta e três, quarenta e quatro quarenta e cinco quarenta e seis, quarenta e sete quarenta e oito.


9.8.09

O gato de Doris Lessing


Sou Patricia Highsmith, o gato de Doris Lessing. Aos sete anos eu já sabia ler, escrever e contar. Aprendi por imitação. Depois da disciplina e das regras de decoro e civilidade cristã. Retrair a urina dentro d’água, por exemplo. Tudo se aprende e decora, inclusive o pensamento. Hoje sei pensar. Por imitação. Minha vida não daria oito páginas escritas à mão e trocadas por rum numa prisão de paroxítonas. Tenho um temperamento burlesco allegro e sei fazer leitura labial dos afetos humanos em seu teatro mecânico. Desde que soube que os adventistas do sétimo dia vivem nove anos mais do que os comuns, vivo em estado quase vegetativo, pois o segredo da juventude é desacelerar as mitocôndrias. Doris, ao contrário, faz longas caminhadas e toma doses diárias de resveratrol em taças transbordantes de vinho tinto. Eu não contei a ela que isto não vai adiantar, saúde não é questão de faxina do LDL. Mas também não contei muitas outras coisas, não seria natural. Ela nem imagina que, além de ler, escrever e contar, eu sei controlar meu estresse oxidativo. Uma nonagenária com inervação excitatória e a bolsa sempre repleta de comprimidos de ginkgo biloba não aceita certas coisas com facilidade. Prefiro que pense que divirto seus convidados ilustres e me contento com meus êxodos gástricos enquanto lambo minhas patas de almofada. Na verdade poucas coisas na vida me aborrecem, entre elas uma certa sensação cansativa de me ver usado como uma espécie de guia do leitor. Sempre que me deito sobre uma pilha de livros e meus olhos se perdem ao sabor do tédio nos rodapés interrompidos da sala, alguém aparece para puxar o primeiro livro da pilha e começar a ler. Não sei interpretar essa reação humana. Talvez gostem de livros mornos, receiem que eu vá babá-los ou atribuam à minha escolha casual de um livro para me recostar um oracular critério de escolha que lhes falta. É duro ser gato de escritores. Ser interpretado a cada movimento, a cada olhar. Sentada à escrivaninha, Doris olha nos meus olhos e escreve, escreve, escreve. Inspira-se na minha sonolência. Chego a pensar que é por este motivo que tanta gente hoje perdeu o gosto pela literatura. Ela faz dormir. Decerto foi por isso que criaram a expressão livro de cabeceira. Ninguém deveria confiar em escritor que tem gato. Eu não confio há um bom tempo, desde que Doris recebeu o Nobel e nem mencionou a minha participação em sua prolífica obra. Após essa decepção, em que nem vi a cor dos milhões de coroas suecas, comecei a evitar todo tipo de contato visual entre nós. Quando ela se acomoda na cadeira todas as manhãs para escrever, eu já estou de costas, fingindo interesse nas borboletas idiotas da paisagem ou roncando com meus botões. Ela então me acaricia com ternura, como se eu não soubesse de sua real intenção, remexe nos objetos sobre a mesa, tosse três vezes e demora, demora séculos para escrever uma primeira frase. E não escreve. Olha fixamente para o rabo recolhido do seu agente sentimental e ele não lhe inspira uma lembrança, uma imagem, uma associação, nem mesmo uma confissão. Nada. Um rabo sem logos. Ela suspira. Vai ser um longo dia, Doris. Douce est la vengeance.

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16.7.09

Areia com Perrier



chorando no prato do mar
o poeta põe a cabeça no meu ombro
e jura que nunca mais trará
seu caderninho para a praia
escrever lhe dá a ilusão
de que o mundo não existe

é duro ele me ver
fazendo torres de areia com Perrier 






13.7.09

Conversar com os mortos





Aos doze anos de idade comecei a conversar com os mortos. Não foi tão difícil pois aos cinco eu já conversava com eles em pensamento. Nunca conversei com espíritos. Espíritos são Homero, Melanípedes, Sófocles, Policleto, Zêuxis. Talvez Napoleão. Para ser espírito precisa de tempo. Tempo e inteligência. E inteligência é coisa que demora. Saber ver longe sem depender dos olhos. Então os mortos são burros? Não, seria injustiça. Mortos não são burros. Têm outra inteligência. O morto é todo aquele que precisa aprender a morrer, o que por si só é uma grande qualidade, e um pesado fardo. Já os espíritos nascem sabendo. Todo espírito já nasce morto. E eterno. Por isso simpatizo com os mortos, enquanto a maioria das pessoas, mais pragmáticas, prefere falar com espíritos. Espíritos têm o dom da profecia e sempre tem um vivo com um pires na mão para o além, querendo fazer escambo. Diferente dos espíritos, mortos se permitem falar bobagens, nos importunam nas horas mais inconvenientes, em geral falam coisas que já sabemos ou o que não sabemos pela metade, pedem alguma coisa, se confundem com o inconsciente mas no fundo não passam de almas querendo aplacar a solidão, só isso. Não estão ali para revelar segredos, fazer previsões meteorológicas ou solucionar mistérios do passado. Não sabem a origem da vida nem vão puxá-lo pela mão e apresentá-lo a Deus, que Deus é sala vip de espíritos. Por vezes acho que só conversam comigo porque querem um empurrãozinho para voltar-lhes a vida. Quando minha mãe morreu, eu já conversava com os mortos há décadas sem que ela soubesse. Ela mesma nunca apareceu para conversar comigo. Suspeito de que, ao contrário do que dizem as lendas, morto não gosta de conversar com parente. Principalmente se morreu endividado. E quase todo mundo morre deixando um rabo de fora. Sinto sempre a presença deles comigo. Em meus sonhos, quando ando pelas ruas, enquanto trabalho. E se penso na minha morte, não é com os espíritos que me consolo. A eternidade é ilusão, aprendi com A. M. de Toledo, morto em 25 de outubro de 1728.













26.5.09

Apesar da diferença de altura

Em um hotel de Chicago, no outono cheyenne, um rico criador de gado chamado Waco se embriaga, perde no pôquer e se associa a Maddox, ex-pistoleiro de olhos de mingau que deseja esquecer seu passado de fora-da-lei. Antes de a noite acabar, eles decidem partir para comprar uma boiada no México. Durante o acidentado percurso, a notável diferença de altura dos dois, em vez de plantar discórdia, os aproxima fazendo nascer uma amizade de fortes. Após cruzarem um deserto de sal, eles se perdem e vão parar em Wichita Sky, uma cidade-fantasma cercada de rochas esculpidas pela erosão e assombrada por espectros de índios sioux em sanguinária batalha contra espectros de ianques renegados. Sem saber se haviam chegado na porta do inferno ou do Texas, os dois amigos se mostram determinados a expulsar da cidade o que julgam ser uma manifestação do demônio. No entanto, pela primeira vez eles divergem dos métodos. Waco, que apostava no futuro nas alturas e acreditava que o céu sempre manda alguém, achava que deviam construir uma igreja evangélica, pois entre o bem e o mal não há acordo. Maddox, acossado pela memória e preferindo jogar todas as fichas na pacificação do passado, tentou convencer o amigo com palavras duras: "Hijo de cuatro puercos, odiar o diabo é o mesmo que odiar o deserto por não ter água. Temos de proteger os túmulos, não construir igrejas." Não houve regateio. Em meio a visões fantasmagóricas de tiroteios, lutas de machadinha, flechas de fogo, carnificinas, escalpos e árvores de enforcados, Waco construía a sua igreja com as tábuas do saloon, enquanto Maddox negociava a paz sepulcral com as almas penadas dos sioux para que retornassem a sua reserva e com as almas ianques para que voltassem à Inglaterra, terra ancestral de onde nunca deveriam ter saído. A salvação de Waco foi garantida tábua por tábua até que a madeira durasse. Em uma mesa branca no cemitério, Maddox garantiu a paz fumando em um rifle de 15 tiros com os líderes sioux e ianque. Na véspera do dia de Ação de Graças, Wichita Sky amanhece afinal livre das assombrações e as primeiras diligências e carroças voltam a circular. Waco acredita que foi a igreja que os salvou. Maddox silencia e não o desmente, pois a vida lhe ensinou o valor de uma amizade sincera e verdadeira, apesar da diferença de altura. Os dois desistem da boiada mexicana e compram um rancho bucólico no Oregon, onde fabricam uísque até o fim dos seus dias, embalados por sinfonias pastorais de caubóis-cantores entre um crepúsculo e outro.



20.5.09

Gertrude Stein: uma rotina




Miss Stein acorda todo dia às 10h e bebe um pouco de café, de má vontade. A possibilidade de ficar nervosa sempre a deixa nervosa e ela acha que o café a deixará mais nervosa ainda, mas foram recomendações médicas. Miss Toklas, sua companheira, acorda às 6 e começa a circular pela casa, faxinando. Certa vez quebrou um belo espelho veneziano e chorou. Stein deu uma gargalhada e disse: "Ora, que importa? Objetos existem para serem consumidos, como bolos, livros e gente." Toda manhã Toklas dá banho, penteia e escova os dentes do poodle francês das duas, Basket. O cachorro tem sua própria escova.

Stein tem uma banheira gigantesca, feita especialmente para ela. Uma escada precisou ser retirada da casa para instalá-la. Após o banho, ela veste um roupão de lã enorme e escreve um pouco, embora prefira escrever do lado de fora da casa, após vestir-se. Na casa de campo em Bilignin há montanhas e vacas e Stein gosta de ficar olhando montanhas e vacas enquanto escreve. As duas costumam sair no Ford até encontrar um lugar inspirador. Então Stein senta num banquinho portátil com seu lápis e bloco, enquanto Toklas, munida de coragem, coloca uma vaca no campo de visão de Stein. Se a vaca não combina com o estado de ânimo de Stein, as duas voltam para o carro e procuram outra vaca. Quando a grande senhora está inspirada, ela escreve rápido por uns 15 minutos. Mas em geral ela só fica sentada lá, olhando para as vacas.

Stein sempre se encarrega de dirigir o automóvel. Toklas fica no banco traseiro, gritando e sacolejando, pois todo mundo sabe que Stein é a pior motorista da história da engenharia automobilística. Entra nas curvas rápido demais, não usa a mão para sinalizar, dirige na contramão, não respeita sinais de trânsito da mesma forma que não respeita os de pontuação, e nunca buzina. Apesar disso, nunca sofreram um acidente.


(em edição de 13.10.1934 da New Yorker, trad. MP)



12.5.09

Dinorá




Dinorá nunca saberia quem a matou. Não saberia a que horas exatamente o assassino entrou em sua casa e esperou pelo momento certo para fazê-la exalar o último suspiro. Dinorá foi comer uma fatia de bolo na cozinha e a faca que deixou sobre a mesa em meio aos farelos cortou a sua barriga de leste a oeste. O marido dormia. As crianças dormiam. As brasas na lareira já não iluminavam a sala. Mas Dinorá era gulosa. Tinha fomes noturnas. Medo do escuro. Medo de passar fome no escuro. O assassino também provou o bolo. O perito encontrou fragmentos de glúten na arcada dentária de Dinorá, pegadas enlameadas na porta da cozinha, farelos na mesa, no chão, nos dedos da mão direita de Dinorá, no corredor e na porta da frente. O marido e os filhos de Dinorá não comeram o resto do bolo. Não comeriam nunca mais bolos no que restou de suas vidas. A polícia nunca saberia quem a matou. Dinorá foi enterrada em 28 de agosto de 1909 com uma cerimônia simples na catedral de Yorkshire, o melhor bolo de sua terra.



6.4.09

Espumas



espuma casca de ovo
perfilado de espuma

espuma injetada
antiescaras
acoplada

espumas alveoladas
piramidais
aglomeradas
torneadas
para dublagem a fogo
à cola
para assento universal
e dias reticulados
para absorção de choques
e vibrações
spray dos dias
para fadiga dinâmica

espumas castro alves
espumas da Nasa
em forma de L
em forma de U
em forma de tubo

l'ecume des jours



12.3.09

One Pound


Only

emotion

endures


27.2.09

exercícios prepositivos acidentais






de quem eu gosto às paredes confesso

de quem eu gosto ante as paredes confesso

de quem eu gosto após as paredes confesso

de quem eu gosto até às paredes confesso

de quem eu gosto com as paredes confesso

de quem eu gosto contra as paredes confesso

de quem eu gosto das paredes confesso

de quem eu gosto desde as paredes confesso

de quem eu gosto nas paredes confesso

de quem eu gosto entre as paredes confesso

de quem eu gosto para as paredes confesso

de quem eu gosto perante as paredes confesso

de quem eu gosto pelas paredes confesso

de quem eu gosto sem as paredes confesso

de quem eu gosto sob as paredes confesso

de quem eu gosto sobre as paredes confesso

de quem eu gosto por trás das paredes confesso







21.2.09

A boneca de Kafka






Querida mãe


Eu estava debaixo da sua cama o tempo todo. Disso você nunca ficou sabendo enquanto viveu. Mas se tivesse me procurado melhor, tivesse se dignado a colocar os seus joelhos ralados e sujos de menina no chão e olhado embaixo da cama, teria me encontrado lá. Não precisaria ter ficado tão triste, ter soluçado desesperada aquela tarde no parque e chamado a atenção arguta daquele homem doentio que mentiu para você dizendo que a sua querida Puppe -- eu -- não havia sumido, que estava viajando pelo mundo. Agora me diz, se você ainda tem boca para falar, como eu poderia estar viajando se estava parada lá, jogada no chão? Largada como um papel de bala amassado no meio do pó, à vista de baratas e dos insetos mais daninhos. Você havia se debatido a noite toda, soltou a minha mão e eu acabei escorregando pelo vão da parede fria. Você alguma vez já escorregou por uma parede fria, mamãe? Feito uma lesma? Sei que a essa altura nem deveria mais chamá-la de mãe, pois você deve estar morta. Toda carne morre cedo e eu ainda estou viva. Sou de pano e moro em Berlim, nunca saí de Berlim, fiquei aqui esse tempo todo pertinho de você sem que você me visse ou me encontrasse. Que ironia, hoje é você quem se mistura ao pó enquanto eu virei objeto de colecionador sem jamais ter viajado pelo mundo como disse o estranho de Praga nas sucessivas cartas que ele escreveu para você em meu nome. Como pôde acreditar que eu iria embora sem me despedir?, que eu estava cansada das mesmas pessoas se todas as minhas mesmas pessoas eram você? Como pôde acreditar que eu usaria um intermediário, um estranho, para me comunicar com você por carta? Eu nem o conhecia, ninguém conhecia aquele infeliz nesta cidade, o estranho que fugira de Praga para morrer em Berlim. Como pôde confiar num homem com cara de barata? Ele a iludiu para se fazer de bonzinho. Ou se fez de bonzinho para se iludir, como todo escritor costuma fazer. Sabia que ele era escritor? Que usava as palavras como um passatempo mórbido? E você caiu na conversa. Acreditou nas cartas falsas, nas leis da ficção. Por três semanas acreditou nas cartas que ele lia em voz alta para você, vendo em você não a dor da sua perda, mas a própria fragilidade dele. E aos poucos o estranho foi lhe ensinando o comportamento correto da imaginação. Você acreditou quando ele disse que eu cresci, fui para a escola e conheci pessoas novas. Acreditou quando eu disse pela boca do esquisito que alguma coisa me impedia de voltar para o seu lado. E continuou acreditando mais a cada dia e se conformando com o meu desaparecimento, a sua perda. Acreditou tanto que no vigésimo primeiro dia sua imaginação já era um balão cheio de sonhos que não eram seus, eram sonhos da menina que ele tinha na cabeça. No vigésimo primeiro dia, junto com um pedaço de bolo, você, quase feliz, ouviu-o dizer que eu havia casado e morava com o meu marido boneco numa casa de campo! A Puppe casou enfim, a sua bonequinha casou, como se dissesse "Agora você está livre!" Que historinha ridícula, mamãe. Em vez de ajudá-la a me procurar, ele inventou uma nova boneca, uma boneca que não era eu, não usava minhas palavras, não falava pelo meu coração. E as cartas, uma após a outra, eram uma despedida intencionalmente prolongada de você, eram uma espécie de tortura lenta, pois ele sabia, melhor do que ninguém, que toda história precisa ter um fim. Que até as bonecas têm seu fim. Um fim definido por ele. O fato de eu ainda poder estar por perto perdida e esperando por você não significava nada para ele. Como você, ele não sabia que eu estava lá embaixo, mas poderia ter adivinhado. Toda boneca um dia cai da cama. Só que ele queria que você parasse de chorar, queria calar a criança rabugenta, queria que o mundo voltasse ao silêncio dos parques, e não hesitou um só instante em dizer-lhe que eu já estava longe, viajando pelo mundo, "mudando de ares". Ele precisava afastar-me de você, retalhar os meus panos e compor uma boneca nova. Não uma boneca suja e perdida embaixo da cama, mas uma boneca nova com um final feliz. Todo mundo gosta de um final feliz e um grande escritor não é diferente. O diferente é que eles precisam usar a boneca para admitir. Toda menina gosta de bonecas que casam, as sujas é melhor que fiquem esquecidas embaixo da cama.


Dora





13.2.09

As meninas & Favor não tocar


sinédoque
metonímia
hipérbole
metáfora e
metalepse









Exemplar do último livro impresso em papel, circa 2111. 

Medidas: 0,9mm x 0,9mm. Bom estado de conservação. 
Capa e lombada com sinais de desgaste nas bordas.
Manchas do tempo no corte. 
Assinatura do antigo dono na folha de rosto.
Miolo em bom estado.
Anotações a caneta microscópica nas margens direitas.
Esparsas manchas de acidificação.

Favor não tocar.





25.1.09

Eva Braun: Uma Psicografia Não Autorizada



I

Esta é uma história para poucos. Uma história para quem tem sangue-frio. Eu não preciso que acreditem em mim. Esta é a minha história e me basta ser como é. Também não preciso justificar ao mundo as atitudes que tomei em vida. Bem sei que sou a mais desprestigiada das Evas. Uma Eva sem Paraíso. E como tal fui esquecida pela história. Fui esquecida e minha memória conspurcada porque me deitei com o Cão. Paguei o meu preço e hoje vivo no mais perfeito limbo, circulando na companhia bisonha de espíritos das mais diversas linhas e qualidades de baixeza. Fantasma de minha própria sombra, ainda trago comigo a aliança presenteada pelo meu Führer naquele fatídico 29 de abril de 1945, quando todos os Aliados bebiam champanhe à custa de nosso sofrimento que logo teria um fim em pequenas cápsulas de "amêndoas amargas". Minha jornada com Adolf foi terrível, confesso, só o diabo sabe o que fazíamos nos corredores do Bundestag. Nas longas noites de ausência do meu amado, ficava eu só, com meus banhos de leite de cabra e a companhia silenciosa de nosso cãozinho pastor, Blondi. Deitada em meus lençóis de seda, ouvia o ronco das divisões Panzer e dos Stukas e meu coração de Valquíria se deleitava. No rádio de cabeceira os gritos ensurdeciam meus ouvidos: Ein Führer, Ein Volk, Ein Deutschland! Mas à medida que o tempo passava, eu ia ficando farta daquela merda toda. Daquele mar de sangue fétido. Daquelas noites solitárias sem os cochichos do meu amado "Fraulein Braun, meu docinho da Floresta Negra". Estava farta das operetas, dos fins de semana em Munique, no hotel Vier Jahreszestein, onde Adolf se ocupava de seu pincel inútil, me confundindo com o povo da Germânia. "Fui transformada em bovino como todos os outros", eu escrevi no meu diário. Dói-me lembrar dos nossos últimos dias no bunker, quando aquele cabo idiota, o líder supremo da nação ariana, passava suas horas lendo a História de Frederico o Grande, de Carlyle, e trocando confidências com Goebbels, sempre ele, ah, quanto ciúme eu sentia... Quando Adolf finalmente resolveu engolir as malditas cápsulas de cianureto (ao contrário do que a história registra, ele não deu um tiro na cabeça), eu ainda pude ouvir suas últimas palavras: "O sangue do mundo é meu destino", e meu coração se encheu de dor, e alívio. No entanto, alguma coisa me dizia que a minha história não acabaria ali.



II



Não era novidade para ninguém, muito menos para mim, que, de todas as jovens de raça ariana pura, o Führer escolheu a mim por me julgar a mais estúpida e obediente. Aquele filho de fiscal de alfândega, née Senhor das Trevas, o Líder Supremo, julgava-me então uma avezinha frágil em suas poderosas mãos, uma Barbie de Weimar que ele carregava para cima e para baixo em Berchtesgarden, nosso retiro na Baviera. Eu, fingindo-me de tonta, posava para fotos ao lado dele e de seus "homens fortes": Goebbels (o bode de Babelsberg), Himmler (psicopata da vida cotidiana), Rommel (sempre cheirando a camelo), Ribbentropp (que mania de beliscar minha bunda), Goering (de mau hálito sempre pronto para invadir qualquer espaço aéreo) e Leni Riefenstahl (uma moçona de ferro com suas lentes fálicas filmando a tudo e a todos em ângulo perfeito). Em nossos jantares vegetarianos, eu costumava prestar atenção em tudo: nas conversas, nos tiques nervosos, nos silêncios, no timbre das gargalhadas, nos olhares trocados e, principalmente, no não dito. Sempre desconfiei de que são nas reticências que residem as grandes traições da história. Acordos eram selados de uma só penada, para serem desfeitos no dia seguinte com uma troca de olhar. Pactos eram firmados com apertos de mãos e discursos, para serem rompidos com um meneio de cabeça. Stalin sem dúvida foi uma das vítimas destes silêncios do Führer. Por isso, sempre que eu me encontrava ao lado do meu amado, procurava o máximo possível ocupar a sua mente com uma tagarelice improvisada. Não queria dar espaço ao silêncio. E se sobrasse para mim? Houve apenas uma vez em que o Führer quase perdeu as estribeiras comigo. Aconteceu numa gélida noite do inverno alpino. Estava eu tranquilamente recostada em minha chaise-longue na frente de nossa lareira, lendo Crime e castigo, quando o Líder chegou acompanhado de Goebbels (sempre ele) e aproximou-se por trás de mim para bisbilhotar o que eu estava lendo. Sua expressão de repulsa, ao constatar minhas preferências literárias, só não foi maior do que a expressão de nojo estampada na cara naturalmente nojenta de Goebbels. Os dois trocaram um sorriso de escárnio e se afastaram para continuar o assunto que estavam discutindo. O tom de voz de ambos era até então sereno, o Führer só se exaltando quando pronunciava as palavras Guerra Total, assim juntinhas. Nesses momentos ele chegava a gritar. Toda vez que esta frase era alçada, vinha em urros -- GUERRA TOTAL. GUERRA TOTAL. Meus ouvidos já estavam doendo com aquilo e resolvi interferir:

-- Querrrido, o que é Guerra Total?

Meu Führer e Goebbels olharam para mim boquiabertos e depois retomaram a conversa só deles. Os gritos continuaram. Eu insisti.

-- Querrrido, quem é Guerra Total?

Adolf, controlando sua raiva, virou-se para mim e disse, os dentes cerrados:

-- Evinha, meu Apfelstrudel, Guerra Total é um conceito.

Eu assenti, balançando minhas mãos cobertas de joias da coroa russa, e disse a ele:

-- Ja, entendi, é uma questão de culturrra...

E foi nesse exato momento que Goebbels, dominado pela cólera, me interrompeu para pronunciar a famosa frase cuja autoria seria erroneamente atribuída a ele tempos depois:

-- Toda vez que ouço falar em cultura, tenho gana de puxar um revólver!



III



Em junho de 1940, enquanto eu cavalgava aquela coisa enorme e dura ao som de O pássaro de fogo de Stravinsky girando no gramofone, as tropas do Führer se acercavam de Paris. "Monique, Monique, rebola minha querrrida", era assim que ele me chamava nas horas em que eu arrancava minhas calcinhas de camurça e enterrava meu corpo no seu. Tinha a mania de, durante o sexo, chamar-me com nomes de prostitutas francesas. Há meses que ele não me procurava na cama e eu já andava desconfiada de suas intermináveis revistas às tropas sempre tarde da noite. Ele voltava cheirando a charuto e bebida barata dos seus companheiros de farda. Mas nesse dia da invasão de Paris, Adolf estava inusitadamente feliz e resolveu fazer comigo uma Blitzkrieg doméstica. Confesso que naquela noite eu já estava cansada e umas duas doses acima. A semana inteira vira soldados e oficiais indo e vindo apressados pelos corredores, sucessivas reuniões até altas horas da madrugada, sem que eu soubesse que, secretamente, o alto comando articulava a ocupação da França. Pobre França... Agora eu entendia por que ele ultimamente vinha me chamando de Madame Pompadour! Eu devia ter entendido os sinais. Ora, ele dominaria a França afinal. Dali para o resto do mundo seria um pulo! Até onde iria sua ambição napoleônica? Que territórios mais lhe seriam suficientes para saciar sua fome de poder? Em nossas horas de intimidade eu costumava dizer-lhe que aquela maldita guerra estava nos afastando. Por que as coisas tinham de ser assim? Adolf então tomava meu queixo em suas mãos e, mirando fixamente os meus olhos, sussurrava: "As coisas são o que eu digo que são." Depois me abraçava com formalidade, garantindo que o seu amor por mim só não era maior do que a dívida pública. E era então que eu me perguntava por que um homem tão expansionista como ele só se limitava a ter uma mulher ao seu lado. Afinal nossa "comunidade étnica" era tão bem servida de beldades... Sim, porque eu sabia que não havia outras na vida dele. Eu gastava milhares de marcos para me manter bem informada de seus passos. Meus espiões secavam minhas economias. Se a Gestapo por acaso descobrisse que eu andava espionando as ausências do Führer, certamente faria a minha caveira com ele. O que, no entanto, significaria um risco para eles também, porque se não conseguissem provar nada contra mim, meu amado não pensaria duas vezes em cortar-lhes a cabeça. E sem guilhotina! Ah, mas naquela noite de amor eu havia encarnado a própria Hipólita. E na qualidade de rainha das Amazonas, eu cavalgava com determinação e sem temor. "Tous le jour à tous points de vue je vais de mieux en mieux." E meu mieux tinha pressa, pois a qualquer momento minha montaria poderia perder o ímpeto. Se ele porventura se distraísse e o pensamento de táticas e estratégias dominasse sua mente, a pistola fria e dura negaria fogo e eu ficaria mais uma vez a ver navios. Porém isso não aconteceu e após alguns minutos de sôfrega cavalgada, eu atingi o ápice do prazer. Uma loucura! Meu Führer suava pois não havia tirado o uniforme. Após o gozo, eu caí ao seu lado, ainda tonta de prazer, ele afagou meus cabelos desatentamente e disse, recolocando a pistola no coldre após recarregá-la com as balas que deixara sobre o criado-mudo: "Durma bem, Fraulein."



IV



Nos anos 1930 havia em Viena uma revista literária clandestina chamada Letras, avante!, ou Letras, sentido!, ou seria Letras, de pé!? Bom, sei lá, faz tanto tempo que minha memória virou pó. Só posso dizer que não sei por que cargas d'água os editores de tão malfadada publicação queriam que eu publicasse lá minhas famosas receitas de Apfelstrudel. Diziam os doutos letrados que eram receitas dadaístas. Sim, dadá foi a cara que eu fiz quando me disseram isso. Daí levaram horas me explicando o que significava dadaísta, enquanto eu conferia meus bilhetes de loteria. Hum-hum, sei... Para mim aqueles caras estavam é loucos. E como de loucura eu já tinha PhD, resolvi passar-lhes as receitas mesmo assim. Não pude resistir àqueles olhinhos azuis expectantes, àquelas mãozinhas nervosas me apontando no papel a beleza estética crua e contemporânea da frase "Cozinhe 4 dúzias de argentinas em fogo brando" (minha receita para um batalhão). O tempo passou, esqueci a história porém, numa bela manhã de outono, enquanto eu fazia uma caminhada solitária às margens do Danúbio, fui interrompida por uma tropa de assalto do Führer comunicando que me chamavam de Viena com urgência ao telefone. Não é que eram os tais editores ensandecidos? (O que Viena não faz com as pessoas...) Os tais dadaístas então me disseram que das dez receitas que enviei, haviam selecionado cinco para serem publicadas no novo número da revista. Hum-hum, ótimo, eu disse, já envaidecida. Mas tem um problema, eles disseram. Sim, e qual é? Precisamos do seu currículo, Fraulein. Como é que é? Sim, Fraulein, ao lado das receitas, assinadas pela senhora, queremos colocar alguns dados biográficos seus. Mas e quem lhes disse que eu vou assinar as receitas? Pra quê? Qualquer pastora de ovelhas nesta velha República de Weimar tem uma receita de Apfelstrudel oculta debaixo do avental. Por que eu? Mas, Fraulein, as receitas são criações suas, alguém fez o Apfelstrudel!, eles insistiram. Pois que todos se entupam de Apfelstrudel e me deixem em paz, eu não vou assinar porcaria nenhuma! Meu nome não pode sair nesta revista maluca de vocês! Querem que o Terceiro Reich me asse viva? Vocês sabem como eles adoram deixar as pessoas passarem do ponto. Além do mais, quem se importa se sou alemã, albanesa ou marciana? O que todos querem são as maçãs! As maçãs!!! (Eu já estava ficando apoplética. Batia maniacamente com meu salto alto no piso de tábua corrida e dava gritinhos pelo telefone.) Nein! Nee! Mas, Fraulein, é só um doce de maçã, que risco há nisso? (Como os vienenses são teimosos.) Nem que fosse o Alcorão ou um rol de roupa suja, meu filho, eu não assino essa merda de jeito nenhum. Arranjem alguém aí que o faça, um ghost-writer morto de fome, um aristocrata falido, sei lá, inventem alguém! Dito isto, bati com o telefone e engoli três vezes três calmantes. Tanta impertinência me tirava do sério. Era só o que me faltava... Três semanas mais tarde, recebi pelo correio a maldita revista, pronta. Folheei-a de cabo a rabo. Cadê as receitas? Nada. Miseráveis. Nem no rodapé! Fiquei descontrolada. Goebbels (Ach, der mit seinem Regenwurm!), reparando que eu, nervosa, sacudia e apertava a revista como se fosse espremê-la, aproximou-se de mim e, com seu sorriso de desdém tão peculiar, cochichou no meu ouvido: "Você achou mesmo que eles iriam publicar qualquer coisa sua que não tivesse a assinatura de Eva Braun?"



V



Certa noite, na primavera de 1943, após um jantar cerimonioso no castelo de Berchtesgarden em homenagem a Josef Mengele, que acabara de inaugurar mais um dos seus tenebrosos campos de concentração, retirei-me mais cedo para os meus aposentos. Estava com uma insuportável dor de cabeça pois passara a noite ouvindo o Führer falar de como havia conhecido Mengele em seu laboratório de patologia na Universidade de Frankfurt. A certa altura da refeição, enquanto eu degustava meu Kassler com volúpia palatal e Adolf espetava suas ervilhas no prato uma após a outra, Mengele ia nos descrevendo as experiências físicas e psicológicas que vinha realizando na área da medicina nazista. O "anjo da morte", como era conhecido, não perdia uma oportunidade de vangloriar-se de seus feitos, e foi assim que naquela noite ouvi os relatos mais escabrosos a respeito de cirurgias sem anestesia, dissecação de cadáveres, remoção de órgãos, injeções de germes letais, cirurgias experimentais com gêmeos, transfusões de sangue, cirurgias de troca de sexo etc. Não preciso dizer que minha digestão foi para o espaço. Antes que eu vomitasse nas travessas de sobremesa, pedi licença e me retirei apressada. Mengele cumprimentou-me com suas frias e precisas mãos de cirurgião e minha pele macia como pêssego arrepiou-se toda. Saí dali em desabalada carreira e desci os corredores escuros em direção ao meu quarto. Fechei a porta e, sobressaltada, passei a chave na fechadura. Um silêncio maligno dominava o ambiente. Eu já não ouvia as vozes e as gargalhadas dos convivas no salão. Mas o que me impressionou é que tampouco ouvia as batidas do meu coração ou dos meus passos no aposento. Tudo estava completamente escuro. Mas como? Eu sempre deixo uma luz acesa quando me ausento do meu quarto, pois assim fica mais fácil para eu me orientar quando retorno tarde da noite, às vezes meio passada na bebida ou sonolenta demais para distinguir a cama de uma banheira. Mas ali a escuridão era tanta que a irrealidade era visível, e o vazio, palpável. Não encontrei luzes ou candelabros, nem um toco de vela. Então, aproximei-me das janelas e escancarei as cortinas. Se houvesse lua, eu conseguiria um pouco de iluminação afinal. Alvíssaras. A lua cheia invadiu o quarto e pude enxergar mais de um palmo à frente do nariz. Mas...aquele não era o meu quarto! Onde eu estava? Havia uma cama com dossel, um guarda-roupa monumental com águias desenhadas em relevo na madeira, e uma cômoda de quatro gavetas. Sobre a cômoda, uma pintura renascentista de autor desconhecido ornamentava a parede. A decoração era simples, quase beneditina eu diria. De quem seria aquele quarto? Da governanta? De algum criado, ou segurança pessoal? Não me parecia que estivesse sendo ocupado por alguém. Tudo tão impessoal, cheirando a capela de cemitério. Seria um dos quartos de hóspedes? Aproximei-me da cômoda e abri uma gaveta ao acaso. Papéis, documentos, recortes de jornais, cartas...vários envelopes de cartas presos por uma fita negra e embolados em uma calçola bordada onde se lia "Mimi Reiter". Comecei a vasculhar. Uma carta de Theodor Morell para o Führer. Morell era o médico pessoal de Adolf. Na carta ele recomendava cuidados com o único testículo do Führer e receitava uma pomada antialérgica. Dentro de uma luva de boxe de Schmeling, achei inúmeras fotos de nádegas de mulheres, homens e crianças nus. E mais fotos de mulheres nuas de um famoso estúdio fotográfico de Berlim. O que significava tudo aquilo? A quem pertenciam aquelas coisas? Ao ocupante daquele quarto? Ou era material sigiloso do Führer? Eu tinha pressa e continuei abrindo outros envelopes. Uma carta de uma tal de Stefanie...para Adolf. Uma carta de amor!!! Mas como? Com endereço de Linz. Uma caligrafia praticamente ilegível. Passei sem demora a outra. Uma carta de Erna Hanfstaengl, quem seria esta fulaninha? "Adolf, meu potrinho, tenho saudades do teu galope"...que vulgar. Ensandecida, comecei a rasgar todos os envelopes, procurando pelos remetentes de tão desditosas missivas. Outra carta agora de Winifred...Winifred? A nora de Wagner? Não é possível. Por isso ele nunca saía da casa de Wagner! E eu que cheguei a achar que ele estivesse interessado no próprio Wagner!!! Como fui tola. Minha cabeça começou a girar e tive de me apoiar na cômoda para não cair. Respirei fundo e voltei à minha função. Eu não sairia dali sem saber de tudo, sem vasculhar aquela sujeira toda. Foi então que um pensamento atravessou a minha mente, paralisando-a numa só frase: Aquele era o quarto secreto do Führer! Sim, Frau Raubal, a governanta, já havia comentado comigo que Adolf possuía um aposento privativo que a ninguém era permitido o acesso. Nem as criadas podiam entrar para fazer a limpeza. O quarto secreto do Führer!!! Sem perder tempo, e amedrontada, voltei às cartas. Um envelope estranho chamou minha atenção, estava coberto de flores desenhadas e exalava um forte cheiro de alfazema. Remetente...Geli. Hum... Geli, Geli, a sobrinha? O que diz a carta? Vejamos... "Queridinho, queridinho, por que me proibistes de minhas aulas de canto? Não sabes que cantar era toda a minha vida? E que agora minha vida se resume a ti? Menino levado, quando vieres aqui (e espero que seja em breve), vou te colocar de quatro e te bater muito até tua bundinha sangrar. (Lembra do nosso chicotinho?) Se continuares assim tão malvado comigo, não faço mais xixi em você..." Aaargh!!! Quase fiquei vesga. Eu não acreditava no que estava lendo. Que despudor! Meu estômago revirou. Como eram capazes? Como ele era capaz de fazer isso comigo? Eu, que fazia de tudo para satisfazê-lo. Transformei-me em uma bonequinha de luxo, a boneca cobiçada de toda a Germânia, só para agradá-lo e agora uma outra fazia xi...não, não tenho nem coragem de repetir. Estarrecida, minha vontade era de jogar-me do alto do Zugspitze, porém saí correndo daquele lugar e atravessei o corredor à procura de minha alcova. Eu não me enganaria novamente. Reconheci a porta do meu quarto e entrei sem demora, ainda enjoada, tonta, minha cabeça latejando. Desabei em minha cama e Frau Raubal despiu-me com carícia.

-- Por que demorou, Fraulein? Nosso banho de sais já está pronto há tanto tempo.



VI



As tropas aliadas já se aproximavam da chancelaria e Berlim estava completamente destruída. Consulto o meu diário, 29 de abril de 1945. A terra treme e o fúnebre redobre da artilharia transforma as ruas em tapetes de corpos e destroços. Minha primeira anotação do dia chama minha atenção: "Políticos são aqueles que se felicitam acreditando que mentem para fazer o bem às pessoas acostumadas a serem enganadas para o seu próprio mal." Isolados no bunker, não havia mais saída para nós. Estávamos perdidos. Com o ânimo decaído, Adolf não ouvia mais em seu gramofone os hinos e as marchas triunfais de sempre. Preferia as valsas de Chopin, o grande músico tuberculoso, às quais ouvia recostado na cama e com o olhar taciturno voltado para o teto. Após nos casarmos numa cerimônia arranjada às pressas que teve lugar na sala de mapas, Adolf havia se recolhido para redigir o seu testamento, no qual ordenava categoricamente que nossos corpos, após o suicídio, deveriam ser queimados no jardim da chancelaria para evitar que fossem exibidos em museus de cera russos como despojos de guerra. Goebbels, o ubíquo, já providenciara cianureto para todos. Ele, Magda e seus seis filhos também iriam ingerir o que eu ironicamente chamei de nossa Solução Final. Ao lado da cabeceira do Führer, sobre a mesinha, uma pistola Walther de 7,65 mm esperava engatilhada, mas, como eu já disse, na última hora ele optou pelo cianureto. Era o fim da linha para o homem que quase conquistara o mundo com sua filosofia beligerante. Era o ponto final de uma guerra que consumiu milhões de vidas com torturas, suplícios, aflições, desolação e espanto. Era, por fim, o eclipse de tudo para mim também que, mesmo à beira do abismo, me sentia aliviada. Pela primeira vez na vida eu conseguia compreender toda a sabedoria do velho ditado alemão: "Glück in Unglück", literalmente, a sorte na má-sorte. Folheando o diário, vejo as anotações que fiz em 6 de fevereiro de 1942, data em que completei meus 30 anos de idade. "Não sou mais do que a combinação da minha realidade com a fantasia daqueles que me amaram", eu dizia em meio a versos de Goethe embaralhados com os meus. Já naquela época eu não conseguia dormir com a mesma serenidade de antes. Abria as cortinas da janela e a neblina confundia as estrelas com aves de rapina. Os céus da Alemanha haviam se transformado nos céus da Luftwaffe. Por que deixei que a minha vida tomasse o rumo que tomou? Como uma mulher feito eu, sensível e um pouco esclarecida, me submeti a tal situação? Não posso explicar, pois eu mesma sou a primeira a desconhecer os motivos. Hoje, diante da morte e dominada pela sentimentalidade mais piegas, só posso chegar à conclusão de que fui, sou e serei eternamente uma escrava do amor. Desde a primeira vez em que meus olhos pousaram nos dele, eu sabia que haveria de segui-lo até o fim. Destino? Quem sabe? Quem se importa? A lembrança daquele 6 de fevereiro me faz mergulhar em profunda melancolia. Quisera eu lembrar-me de algumas anedotas alemãs para consolar-me, mas não consigo. Às 15h do dia 29 de abril faço minha última anotação em meu diário: "Creio porque é absurdo." Adolf senta-se ao meu lado, coloca o retrato de Frederico o Grande em sua mesinha e me passa uma cápsula de cianureto. Às 15h15 minha alma esfuma-se entre a bruma escarlate que tinge os céus da Alemanha novamente. Às 15h30 Adolf dá por encerrado o bárbaro ofício que foi sua vida e Bormann  carrega nossos corpos para fora do bunker como sacos de batata. Caronte, o timoneiro do Além, leva minha alma pela travessia em sua barca do Inferno. Na distância posso ouvir os tenebrosos latidos de Cérbero, a cruel fera que mordia as almas condenadas no Inferno. Eu não queria acreditar que aquele seria o meu destino. Até onde ia a minha culpa? Para onde estaria sendo levada? Senti na boca o travo da eternidade a que minha alma estava condenada. Não havia sido o fim então? Um denso nevoeiro toma conta de tudo e eu já não vejo mais a silhueta de Caronte. Estou sozinha. Olho para baixo e vejo, refletida no pântano, a minha imagem de criança. Uma leve brisa agita as águas e a minha boca refletida sussurra: "Sorria, Fraulein, amanhã pode ser pior."




(2000)







22.1.09

Não há vagas nos motéis


não há vaga nos motéis. 
e eu não posso parar, meu amor. 
me deixe ir. 
ouça o som do meu xixi por trás do avião que passa. 
faço uma lista mental dos dez animais mais inteligentes depois dos porcos. 
dos dez poetas. 
levo cinco minutos nisso. 
mais do que eu pedi pra você ouvir a história da minha vida. 
e do vento que afrouxa colarinhos um pouco para o lado. 
sou a última sobrevivente da Nostromo. não. 
nem que eu pise fundo, o carro sai do chão. 
mas devo ir mesmo assim. 
por causa de você.
há uma lua para descansar 
e as estrelas são as mesmas em todo lugar. 
pesadas, paft a qualquer momento. o céu fica vazio. 
daquele vazio da xícara de café que você levou 133 segundos para beber. 
daquele vazio dos 3 segundos que levou para conservar os olhos em mim. 
eu sei. eu contei. eu não estava de costas pra você na caixa registradora. 
pedi antes. peço agora. me deixe ir. 
muitas juras e uma lata de conversa não serviram. 
nem que fossem oito. 
se acabou, acabado está. 
quer casar comigo? i'm a girl you're a boy. 
a indiferença fuma em silêncio. 
i'm a boy you're a girl. 
duas mulheres sem ser noite sem ser dia. 
suspirando em partes iguais numa casa acostumada. 
certos pensamentos ajudam na hora da curva. 
é a décima vez que passo pelas mesmas árvores ou isso é uma monocultura? 
em nenhum canto deste carro tem um isqueiro. 
não há mais carros que acendem cigarros. 
não se pode querer que a natureza seja original em beira de estrada. 
quantas vezes eu repeti a mesma frase nesta viagem? 
teus cabelos brancos nos pretos. olhos de Picasso. 
não, olhos de Pound que viram Picasso. 
olhos que diziam tudo que eu não queria ouvir. 
esperando pelo resto do um metro e setenta e dois que sua alma não mostrou.
não choro. não lembro. 
seco o volante com a manga do casaco. 
é feio o gesto de secar o volante. 
é triste. 
pareço motorista de ônibus. 
o mundo passa rápido do outro lado da janela. 
correr é a única forma de fazer o mundo parar. 
e não há vaga nos motéis. 
eu não vou parar no Lar do Pescador. 
você é o meu amor, mas a tristeza é mais. 
e neste mundo não há alguém para meu ninguém. 
me deixe ir. nos deixe.
eu era um hóspede e vós me acolhestes. 
seja cristã. 
sim, são linhas retas e daqui a pouco amanhece. 
teu braço debruçado no meu ombro. 
os olhos secos voltados para o mar. 
o barco que arrasto sem ruído. 
você não devia ter aberto o porta-luvas.




17.1.09

As azeitonas de Taggia



eu não escrevo versinhos para o papai
embora ele tenha me ensinado que a
boa poesia deve ser como as azeitonas de Taggia,
não pode ter caroço,
e que todo poeta só é bom se ficar assando

devo confessar que nisso eu concordo com papai
a poesia sempre teve um pé na cozinha
uma cadeira que range
uma couve-flor que se rompe
a xícara lascada de uma avó morta

o que papai não sabe ou nunca reparou
é que foi com mamãe que aprendi a cozinhar
no caminho entre a pia e a beira do fogão
eu aprendi tudo da vida
enquanto ele olhava melancólico para a janela
e a faca sobre a mesa
em vez de ajudar com as panelas

eu não escrevo versinhos para o papai
porque hoje sei o que devo queimar
o que devo congelar
o que devo servir frio