O Sr. D. diz ser escritor e trabalha em um emprego seguro porém limitante que não corresponde aos seus anseios literários. Procurou a análise aos 32 anos, quando a esposa, de um casamento que durara oito anos, o deixou. Ele procurou o tratamento a fim de descobrir se ele foi a causa do fracasso do seu casamento. No transcorrer da análise ficou claro que sua motivação para a terapia não era apenas o desejo de conhecimento ou reconhecimento intelectual, ele buscava ajuda porque sofria de um grave transtorno de autoestima e de uma sensação profunda de vazio interior. Para o petit déjeuner do Sr. D. servimos hoje simplicidade: pain perdu tout bête com café au lait e jus d’orange. A resposta empática foi perfeita. Nosso chef sentiu-se recompensado. A apatia e falta de iniciativa do Sr. D. fazem com que ele se sinta “meio vivo”, segundo suas palavras, e ele procura superar essa sensação de vazio com a ajuda de fantasias sexuais contendo um carregado matiz sádico. A fantasia de controle sádico dirigia-se principalmente às mulheres, em particular à esposa, que o considerava “doente” sempre que se via na condição de “amarrada” aos móveis do casal. Sem dúvida, essas encenações eram uma tentativa de encobrir uma falha primária por meio de estruturas defensivas. Para o déjeuner não obtivemos o mesmo sucesso. O Sr. D. pareceu não apreciar o nosso plat. Queixou-se que o tartare de boeuf estava duro e a vaca, passada. Não quis esperar pela dessert, uma divina panna cotta au caramel au beurre salé. O chef precisou ser tranquilizado com doses comedidas de reforço de onipotência. O Sr. D. pediu um bloco para escrever e voltou para o seu quarto. É correto dizer que seu trabalho como escritor poderia contribuir de forma considerável para o aumento de sua autoestima, no entanto encontrava-se obstruído por um nexo de distúrbios inter-relacionados. O primeiro, manifestação da falha estrutural primária mencionada, estava geneticamente relacionado à falha da função de self-objeto de sua mãe como espelho para o sadio exibicionismo da criança D. O segundo era uma manifestação de uma falha nas estruturas compensatórias do paciente, geneticamente relacionado à falha da função de self-objeto do pai como imagem idealizada. O Sr. D., trancado no quarto, dispensou o goûter. O chef trancou-se na cuisine e quebrou toda a nossa Sarreguemines Louis XV. Reunião extraordinária da diretoria para discutirmos estruturas contensoras adequadas. Os obstáculos ao trabalho criativo do Sr. D. não podem, entretanto, ser explicados apenas com exame minucioso de sua relação com o self-objeto especular materno, pois as aptidões que ele empregava para escrever não se baseavam na estrutura primária, ou seja, no seu relacionamento com o self-objeto especular, e sim na estrutura compensatória, isto é, em talentos adquiridos em um posterior período da infância, na matriz do seu relacionamento com o self-objeto idealizado, o pai. Simplificando, a hora do dîner estava chegando e precisávamos tomar uma decisão. A diretoria, por unanimidade, escolheu um fricassé de mer et sa Julienne de légumes, um prato leve e de fácil confecção que serviria como uma válvula de escape transicional às tensões suscitadas pela alta vulnerabilidade especular entre objeto paciente e objeto chef. Sem que soubéssemos, o chef, por sua própria conta, havia preparado um buffet vegetariano da culinária italiana. Compreendemos de imediato que ele estava disposto a uma fusão bem-sucedida com o paciente, não aceitaria mais decepções. Um buffet era tiro certo, o suficiente para manter seu equilíbrio narcísico. A mesa da sala de refeições exibia o resultado dos processos de elaboração ocasionados por sua recente frustração: um delicado pizzette di sfoglia con zucca e spinaci, um polpettine di melanzane e ricotta, um festivo cous cous con chicchi di melograno e uvetta, um sformato di finocchi e formaggio de tirar o fôlego, uma zuppa di lenticchie e crostini di pane fritto, uma crostata di frutta vegan, uma travessa repleta de biscotti della fortuna vegan. Para a sobremesa, uma mousse al cioccolato con scorza d’arancia candita. O sr. D. surgiu na sala de bom humor e banho tomado. Olhou demoradamente para o buffet exposto, parecendo surpreso. Em vez de se servir, começou a ler os rótulos dos vidros de molho. Sabíamos que, para um escritor, grande parte do self-objeto é a palavra escrita, uma certa habilidade de encontrar alguma coisa na literatura que irá dizer algo de significativo para ele em um momento de necessidade. Por fim, o sr. D. pegou um prato, uma colher de chá e quatro vidros de molho. Pingou algumas gotas de cada um no prato, provando uma por uma, misturando e voltando a provar. Não satisfeito, substituiu os quatro molhos por outros quatro e repetiu o procedimento. Era evidente o prazer com sua obra. A comida esfriava na table, intacta. Após sete meses de tratamento, o sr. D. teve alta, abandonou a literatura e veio trabalhar conosco como chef principal. A sua inventividade no campo dos molhos atrai estudiosos da psique dos quatro cantos do planeta. Quanto ao nosso antigo chef, bem, nosso antigo chef, após algumas sessões de reabilitação conosco, comprou um violino e se mudou para Porretta Terme, onde passa as noites tocando tarantellas in un vecchio ristorante. Suona, suona violino.
22.6.12
Suona, suona violino
O Sr. D. diz ser escritor e trabalha em um emprego seguro porém limitante que não corresponde aos seus anseios literários. Procurou a análise aos 32 anos, quando a esposa, de um casamento que durara oito anos, o deixou. Ele procurou o tratamento a fim de descobrir se ele foi a causa do fracasso do seu casamento. No transcorrer da análise ficou claro que sua motivação para a terapia não era apenas o desejo de conhecimento ou reconhecimento intelectual, ele buscava ajuda porque sofria de um grave transtorno de autoestima e de uma sensação profunda de vazio interior. Para o petit déjeuner do Sr. D. servimos hoje simplicidade: pain perdu tout bête com café au lait e jus d’orange. A resposta empática foi perfeita. Nosso chef sentiu-se recompensado. A apatia e falta de iniciativa do Sr. D. fazem com que ele se sinta “meio vivo”, segundo suas palavras, e ele procura superar essa sensação de vazio com a ajuda de fantasias sexuais contendo um carregado matiz sádico. A fantasia de controle sádico dirigia-se principalmente às mulheres, em particular à esposa, que o considerava “doente” sempre que se via na condição de “amarrada” aos móveis do casal. Sem dúvida, essas encenações eram uma tentativa de encobrir uma falha primária por meio de estruturas defensivas. Para o déjeuner não obtivemos o mesmo sucesso. O Sr. D. pareceu não apreciar o nosso plat. Queixou-se que o tartare de boeuf estava duro e a vaca, passada. Não quis esperar pela dessert, uma divina panna cotta au caramel au beurre salé. O chef precisou ser tranquilizado com doses comedidas de reforço de onipotência. O Sr. D. pediu um bloco para escrever e voltou para o seu quarto. É correto dizer que seu trabalho como escritor poderia contribuir de forma considerável para o aumento de sua autoestima, no entanto encontrava-se obstruído por um nexo de distúrbios inter-relacionados. O primeiro, manifestação da falha estrutural primária mencionada, estava geneticamente relacionado à falha da função de self-objeto de sua mãe como espelho para o sadio exibicionismo da criança D. O segundo era uma manifestação de uma falha nas estruturas compensatórias do paciente, geneticamente relacionado à falha da função de self-objeto do pai como imagem idealizada. O Sr. D., trancado no quarto, dispensou o goûter. O chef trancou-se na cuisine e quebrou toda a nossa Sarreguemines Louis XV. Reunião extraordinária da diretoria para discutirmos estruturas contensoras adequadas. Os obstáculos ao trabalho criativo do Sr. D. não podem, entretanto, ser explicados apenas com exame minucioso de sua relação com o self-objeto especular materno, pois as aptidões que ele empregava para escrever não se baseavam na estrutura primária, ou seja, no seu relacionamento com o self-objeto especular, e sim na estrutura compensatória, isto é, em talentos adquiridos em um posterior período da infância, na matriz do seu relacionamento com o self-objeto idealizado, o pai. Simplificando, a hora do dîner estava chegando e precisávamos tomar uma decisão. A diretoria, por unanimidade, escolheu um fricassé de mer et sa Julienne de légumes, um prato leve e de fácil confecção que serviria como uma válvula de escape transicional às tensões suscitadas pela alta vulnerabilidade especular entre objeto paciente e objeto chef. Sem que soubéssemos, o chef, por sua própria conta, havia preparado um buffet vegetariano da culinária italiana. Compreendemos de imediato que ele estava disposto a uma fusão bem-sucedida com o paciente, não aceitaria mais decepções. Um buffet era tiro certo, o suficiente para manter seu equilíbrio narcísico. A mesa da sala de refeições exibia o resultado dos processos de elaboração ocasionados por sua recente frustração: um delicado pizzette di sfoglia con zucca e spinaci, um polpettine di melanzane e ricotta, um festivo cous cous con chicchi di melograno e uvetta, um sformato di finocchi e formaggio de tirar o fôlego, uma zuppa di lenticchie e crostini di pane fritto, uma crostata di frutta vegan, uma travessa repleta de biscotti della fortuna vegan. Para a sobremesa, uma mousse al cioccolato con scorza d’arancia candita. O sr. D. surgiu na sala de bom humor e banho tomado. Olhou demoradamente para o buffet exposto, parecendo surpreso. Em vez de se servir, começou a ler os rótulos dos vidros de molho. Sabíamos que, para um escritor, grande parte do self-objeto é a palavra escrita, uma certa habilidade de encontrar alguma coisa na literatura que irá dizer algo de significativo para ele em um momento de necessidade. Por fim, o sr. D. pegou um prato, uma colher de chá e quatro vidros de molho. Pingou algumas gotas de cada um no prato, provando uma por uma, misturando e voltando a provar. Não satisfeito, substituiu os quatro molhos por outros quatro e repetiu o procedimento. Era evidente o prazer com sua obra. A comida esfriava na table, intacta. Após sete meses de tratamento, o sr. D. teve alta, abandonou a literatura e veio trabalhar conosco como chef principal. A sua inventividade no campo dos molhos atrai estudiosos da psique dos quatro cantos do planeta. Quanto ao nosso antigo chef, bem, nosso antigo chef, após algumas sessões de reabilitação conosco, comprou um violino e se mudou para Porretta Terme, onde passa as noites tocando tarantellas in un vecchio ristorante. Suona, suona violino.