24.3.13

Amar é sofrer



Amar é sofrer, eu vou te dizer.
"Não se esqueça de trazer uma lagosta pra mim", disse ela bem assim
na beira do cais antes de eu partir para um mergulho
de onde não sabia se voltaria.
Agora aqui, a 45 metros de profundidade,
e descendo cada vez mais,
fico me perguntando por que não a mandei à merda.
Desde criança que tenho dois sonhos:
resgatar do fundo do mar a cruz do bispo Sardinha
e me apaixonar por uma samurai que pise minha garganta
até me faltar o oxigênio pra eu gozar.
Se isso é pecado, me puna.
A cruz do bispo eu ainda não achei,
mas continuo mergulhando, e fundo, muito fundo.
Tão fundo que acabei descobrindo Isabel dentro de uma ostra.
Escondidinha.
Hoje vivemos juntas, só eu pago o aluguel
enquanto ela arde na Fogueira Santa de Israel.
Amar é sofrer, não preciso dizer mais do que as canções banais:
é só uma gota de sangue verbal,
apaixonei-me por uma obreira pentecostal.



18.3.13

SMS



Guarda che bello rubinetto
Quasi bello como te
E nel mio amore per l'acqua
Tu mi hai visto così





14.3.13

( )




 a mão dela está ouvindo a minha 
em algum lugar da cidade
esta mão dolorida
que ela ouve
devo ter machucado
não sei com quê
fechando a porta
no quebra-nozes
guardando Lena Horne
na gaveta
com você


9.3.13

Poni in terra e espera in Diu




O celular vibra às 9. A pontualidade interrompe meu jantar. 
Ao som da primeira flecha, todos os cervos viram a cabeça ao mesmo tempo.

A proposta era irrecusável, e arriscada. Donna,  dannu. Quis dizer  não, mas falei d'accord. Em boca fechada  não entra mosca,  nem bom-bocado. Dois dias para preparar o plano. Depois quem sabe uma cabana no Loire.  E dias de peixe fresco com uma chuva lígure vinda do sul. Ou assim eu imaginava.

Terça. Acabado. A Browning quica na água três vezes como pedrinha de menino. E afunda. O filho de minha mãe babaria de inveja.

Pego a pá no porta-mala. Fora de forma, levo uma hora suando. Hoje em dia até as portas do Inferno parecem blindadas. Tudo coberto, abro uma Sink the Bismarck triplamente lupulada. Talvez o Loire não seja mesmo lá essas coisas.

Não negocio mais com pérolas e por isso tiro uma soneca. Acabei arrumando um buraco em Durness. Turística, porém vazia na maior parte do tempo. A caverna de Smoo seria um bom refúgio mas ninguém aluga. As focas chegaram antes. A cidade tem uma praia, muita pedra, muitos ventos. É só prender a respiração e se ouve de tudo. Uma toalha estendida, um pedido de socorro, uma sirene de ambulância, um beijo bem devagar. Uma onda de água doce.

A mulher até que era bonita. Seu último olhar parecia estar vendo pássaros no telhado de uma casa recém-pintada bem longe dali. Foram três segundos. Espero que não me guarde rancor seja lá onde estiver. Queira Deus ou não. Sou muito supersticioso e ando cansado. No bar do centro um sujeito me fala que inventou uma pasta para dentes de ouro. Precisa de patrocínio. Fico dando corda até terminar o cigarro. A Escócia é muito simpática.  E um pouco triste também.






7.3.13

Chegou um tempo em que não adianta morrer


o poeta de carne
virado de costas pro banco
não quer falar com ninguém


o poeta de bronze
--  turista --
cimentado na posição oposta
proibido de dar as costas ao mundo







6.3.13

O coração preguiçoso



O coração se curva como um peso de flores amarelas
e o chão do barco transforma-se num tapete dourado.
Atentos aos menores detalhes, pois não sabem
o que pensa um coração preguiçoso quando a maré baixa,
os remos se preparam para mais uma viagem no ar parado.

Seus passageiros perdoam tudo o que olham.
Por isso os peixes estavam ali.


4.3.13

A escolhinha de arte



No posto de gasolina tiro o cartão de crédito. A carteira de identidade vem junto. Vejo minha foto e a sensação de que me olho morta. Fotografias de gente me dão esta impressão.  Não dramatizo. A gente morre e passa. Um caga-sebinho pousa em cima da bomba. Costumo ter pesadelos com soldados e bombas. As ruas sendo tomadas e eu procurando um abrigo. Não conheço ninguém. Não carrego armas. Pouco poder de barganha. Os sonhos são ações isoladas. A entrega do corpo. D pede que eu indique uma escolinha de arte para a filha. Eu ouço "escolhinha". O destino poderia ter sido outro. Preferi o boneco de ventríloquo. Agora o tanque está quase cheio. A maresia vem de longe pelas janelas e entra na faixa de ondas. Hay que lavarse con jabón esa lengüita y esa boca. Guardo a carteira metade suor, metade plástico. O frentista me devolve o cartão. Tem olhos de Peter Lorre. Uma mulher perde o ônibus por pouco. Seu tênis branco reflete o sol. Lorre e eu ficamos em silêncio contando os passos.  As cabeças dentro do ônibus. Eu não vou pelo mesmo caminho que ela. Eu vou só ali.