24.6.13

Esvazia, e permanecerás repleto







No prato em branco



falanges de arroz seguem 




em formação cerrada 




como peregrinos no Kailash




o tigre sai do ninho 




para ver as pedras que rezam




meu garfo perfura a rocha pelo flanco




e me sacio com seus corpos




não há coisa melhor






22.6.13

As cuecas do Jardel




Anoiteceu e as cuecas do Jardel continuam secando na corda. Para quem quiser ver. Começa a chover. Não tenho pena. Eu não vou levá-las para dentro. Não tenho tempo. São cuecas bonitas, posso ver daqui. Cuecas de outono. Um vento democrático as balança junto com as folhas de bananeira. Jardel gosta mais de suas cuecas do que dos meus poemas. Não sei se devo. Levo mais de duas horas para achar um anacoluto e mesmo assim cuecas são mais populares do que poesia. Na vida a gente tem de saber escolher: ou acabo a merda deste poema agora ou recolho as cuecas. Talvez eu fale um pouco de Jardel enquanto espero inspiração. Jardel é padeiro -- ou boulanger, como dizem as pessoas que comem chique -- e padeiros escrevem com farinha. Letras não têm fermento, ele diz, não se pode vê-las crescendo e crescendo, transbordando do papel, ficam achatadas lá a vida inteira, esperando que alguém as leia. Uma leitura a frio. Nenhum verso de Camões se compara a uma boa broa de Avintes. Tivesse a boca cheia de croissants, Baudelaire não seria tão amargo, não teria contraído tantas doenças venéreas. Eu não concordo com estas idéias de Jardel, mas elas me fizeram rir quando eu o conheci na cozinha de Madame Niveaux enquanto pegava travessas de salgadinhos. Todos os fins de semana Madame organizava saraus literários em sua casa na Ilha do Governador e para essas ocasiões me contratava para servir a seus convidados ilustres. Foram nesses saraus que aprendi a gostar de poesia entre um canapé e outro que Jardel preparava com rapidez e proficiência. Já nessa época ele queria especializar-se em pães. Enquanto os poetas recitavam na sala, Jardel se pavoneava no fogão dizendo que o pão era mais antigo do que a poesia, você sabia? Que existia desde o tempo de Cristo. Bem, Jardel tinha problemas com datas e para ele a Antiguidade era farelo -- a história da humanidade começava depois de Cristo e pronto. Sentia orgulho de ser bisneto da inventora do bolinho de taioba. Não gostava de escritores e de me ver escrevendo como eles. São todos uns vigaristas manipuladores que querem nos convencer com mentiras que refletem não o que é, mas o que o leitor deseja que seja ou pensa que deveria ser. Todo escritor é um charlatão, comerciante de significados ilusórios. Ele dizia isso mais ou menos com estas palavras. Não me convencia e talvez por isso eu me apaixonei por ele. Madame Niveaux morreu e com ela os saraus. Compramos a casa da Ilha do Governador, que Jardel transformou numa padaria bem diversificada onde vende pães temáticos. Eu. Eu não faço nada. Hoje não cuido mais de nossa casa, não lavo, não passo nem entro na cozinha. Fico sentada escrevendo poemas que Jardel não lê. E por que o faria? Poetas não têm a cabeça bem sovada.







11.6.13

a carne flutua na água


a carne flutua na água
pela janela da Ernemann
a carne é a água
a espuma, a gordura
que a contém

a carne balança na maré

o furo na pele o botão
por onde encho
uma bola de borracha
e corro para brincar
entre vozes de asas




6.6.13

Alguma coisa que não sei



Meu chefe me deu 1 canivete 15 em 1. Presente não sei por quê.
Meu aniversário. Uma aposta de futebol. Não.
Eu nem gosto de futebol.  Aniversário está longe.
Se estamos no mês que julgo estar. 
Veja só, 1 canivete 15  em 1. Por quem ele me toma?
Um abridor de latas.
Fiquei envergonhado, me entregou na sala dele.
Tinha dois caras lá. Ficaram me olhando abrir
a chave Phillips com cara de imbecil.
Estou com sono agora.  Ouço Händel  ou um nome
parecido no rádio. Uma mariposa sobe a parede
tremelicando pela luz do abajur. Não. Uma traça.
Venta muito a essa hora. Minha sogra chega amanhã.
Eu gosto da minha sogra, mas tem alguma coisa que não sei.
Chegar nela é o mesmo que afastar-me.  Sempre fui assim.
Um saca-rolhas.
O besouro desce pela luz. Ele também precisa dormir.
Amanhã as duas vão ficar falando francês. O jur do i.
Um francês de cozinha, mas mesmo assim não entendo.
Minha mãe acha que estou bem encaminhado na vida.
Minha mãe está morta.
Identifiquei seu corpo pela curvatura perfeita 
do crânio sob a mortalha. Um lençol de hospital
100 por cento poliéster que ela odiava.
Minha pequena múmia.
Estou casado há 18 anos. Uma lixa de unhas.
Ela vem me engordando de amor para o abate.
No dia em que disse que eu tinha um sorriso acariciado,
eu a pedi em casamento. O filósofo é um chinelo velho.
Ela diz coisas que eu não entendo. Mas gosto disso só com ela.
Numa palavra pegávamos o transatlântico. A mosca treme.
Ponteira perfurante. Apesar de tudo viver.
Sobretudo às vezes.
Sou um ambientalista de ambientes fechados.
A faca para peixe não veio afiada.
Deve ser para cortá-lo cozido. Não a cabeça crua.
Um canivete suíço completo tem 80 funções.
O chinês tem apenas 15, de aço escovado. Bonito.
Meu chefe deve ter imaginado que eu me confundiria
com 80 funções. Abrir todas ao mesmo tempo e quem
sabe não usar nem a metade.  Me cortar.
Mas tem uma agulha. Não entendi por que é tão grossa.
Haydn.
Esses locutores têm uma voz tão empapada que
nunca sei de quem é a música que estou ouvindo.
É um mosquito. E já está imóvel há dez minutos.
Me esperando na luz acesa.
Faca-pequena-duas.
Verbos para quê?