22.6.13

As cuecas do Jardel




Anoiteceu e as cuecas do Jardel continuam secando na corda. Para quem quiser ver. Começa a chover. Não tenho pena. Eu não vou levá-las para dentro. Não tenho tempo. São cuecas bonitas, posso ver daqui. Cuecas de outono. Um vento democrático as balança junto com as folhas de bananeira. Jardel gosta mais de suas cuecas do que dos meus poemas. Não sei se devo. Levo mais de duas horas para achar um anacoluto e mesmo assim cuecas são mais populares do que poesia. Na vida a gente tem de saber escolher: ou acabo a merda deste poema agora ou recolho as cuecas. Talvez eu fale um pouco de Jardel enquanto espero inspiração. Jardel é padeiro -- ou boulanger, como dizem as pessoas que comem chique -- e padeiros escrevem com farinha. Letras não têm fermento, ele diz, não se pode vê-las crescendo e crescendo, transbordando do papel, ficam achatadas lá a vida inteira, esperando que alguém as leia. Uma leitura a frio. Nenhum verso de Camões se compara a uma boa broa de Avintes. Tivesse a boca cheia de croissants, Baudelaire não seria tão amargo, não teria contraído tantas doenças venéreas. Eu não concordo com estas idéias de Jardel, mas elas me fizeram rir quando eu o conheci na cozinha de Madame Niveaux enquanto pegava travessas de salgadinhos. Todos os fins de semana Madame organizava saraus literários em sua casa na Ilha do Governador e para essas ocasiões me contratava para servir a seus convidados ilustres. Foram nesses saraus que aprendi a gostar de poesia entre um canapé e outro que Jardel preparava com rapidez e proficiência. Já nessa época ele queria especializar-se em pães. Enquanto os poetas recitavam na sala, Jardel se pavoneava no fogão dizendo que o pão era mais antigo do que a poesia, você sabia? Que existia desde o tempo de Cristo. Bem, Jardel tinha problemas com datas e para ele a Antiguidade era farelo -- a história da humanidade começava depois de Cristo e pronto. Sentia orgulho de ser bisneto da inventora do bolinho de taioba. Não gostava de escritores e de me ver escrevendo como eles. São todos uns vigaristas manipuladores que querem nos convencer com mentiras que refletem não o que é, mas o que o leitor deseja que seja ou pensa que deveria ser. Todo escritor é um charlatão, comerciante de significados ilusórios. Ele dizia isso mais ou menos com estas palavras. Não me convencia e talvez por isso eu me apaixonei por ele. Madame Niveaux morreu e com ela os saraus. Compramos a casa da Ilha do Governador, que Jardel transformou numa padaria bem diversificada onde vende pães temáticos. Eu. Eu não faço nada. Hoje não cuido mais de nossa casa, não lavo, não passo nem entro na cozinha. Fico sentada escrevendo poemas que Jardel não lê. E por que o faria? Poetas não têm a cabeça bem sovada.