30.6.13

O jogo



Marfim ou ébano, distribua as peças sobre a mesa. Depois é só ficar de olho nos pontos brancos ou negros das faces retangulares. Ir formando a ideia com caracteres móveis na cabeça. Acender um cigarro, tomar um café. Evocar.  Olhar a paisagem lá fora. Os homens que fazem fila desde cedo na frente de uma parede sem porta.  A marquise de sobrecéu. Você não sabe por que eles estão ali todos os dias se nada acontece. Ninguém fala com eles. Nenhum carro para. Eles só ficam ali na fila da parede sem porta, como unifaces pré-cerâmicos. Alguns sentam, alguns deitam, a maioria fica de pé, olhando para o chão a passos curtos. Você vê e não entende, nem pergunta. Para perguntar, teria de sair e ficar na frente da mesma parede. Mover outra peça que pode levá-lo a perder o jogo. Perder a paisagem. A evocação. O que estou fazendo aqui? Os homens não estão mortos e não querem falar com você. Estivessem, por que não querem falar comigo? Então você fica em casa e move a peça que está na fila para ser movida. Em qualquer ponto da fila, onde quer que você esteja, você perguntará, O que estou fazendo aqui? Você não chora, porque lágrimas descobrem os poros, desembestam o cavalo e o jogo é outro. De caligrafia lenta. Precisa ficar controlando as peças, quase em transe.  Friccionar as codas com um velho arco de crinas. A mente pode ficar no envelope, não seus olhos.  Um envelope repatriado a alguém que só se beija no vidro. Aquela do interior da casa. Da estupa. A pedra 6x6. Tudo passa rápido e você quase não tem mais peças. As regras indicam que este é o caminho para a vitória. Da fome você não passa. Ao seu adversário resta mais. A boca fechada. O poder do não expresso. E ele vence. É só um jogo. O adversário, um aliado. Você aprende, embaralha as peças e ergue outra vez a cabeça. Os homens ainda estão lá. Porque a porta é sua.