A primeira vez que abri os olhos era
noite. Lembro de luzes acesas no meio de uma escuridão larga. Mais tarde eu
entenderia que aquilo devia ser a iluminação de uma rua, uma avenida, um centro de cidade. Não
sei se da cidade onde nasci pois logo minha família trocou de lugar por outro
mais ao norte, onde havia mais dinheiro e oportunidades de uma vida melhor sem pequenas misérias para atrapalhar. A outra noite de que lembro foi no meio do mar.
Devíamos estar num barco pois vi água em vez de asfalto ao olhar para o chão.
Foi uma sensação boa e virou lembrança na pele. Um forro de vinil. Eu vivia abrindo os olhos e
vendo coisas, nem sempre as que devia. Meus ouvidos também escutavam o que não
devia. Aos poucos fui percebendo todos esses buracos no meu corpo que traziam
coisas que eu sentia boas e ruins. Devia haver uma escola, uma gangue, uma
igreja, um mestre, para nos ensinar a não olhar ou ouvir o que traz ódio ao
peito. Mestre era o que meu pai não era. Nem bandido. Um bêbado fracassado e
ressentido espancador de mulher. Estuprador reprimido. Em mim nunca tocou ou eu
o mataria. Usei chupeta para dormir até os cinco anos mas já sabia do poder de
uma faca de carne bem afiada. Ainda criança dormia com uma debaixo do
travesseiro. Minha mãe, como todas as mães esposas daquele tempo, era uma
empregada doméstica do lar. Uma submissa esperando o momento seguro de atacar como
uma cobra minúscula oculta num bananal. Cobras nem sempre se dão bem. Desde pequena eu
queria matar qualquer filho da puta que julgasse erva daninha. Coisa ruim. Gente
que bate em gente, que chuta animais, manda nos outros e fala demais. Gente
rica, besta e arrogante. Os mentirosos. Os avarentos. Depois você vai vendo que
precisa ser rico e mentiroso para matar a quem odeia e sair limpo. Rico de ódio, ir
guardando tudo aos pouquinhos dentro duma caixa insuspeita de ressentimentos. O
ódio é o motor que acelera meu sangue, endurece os músculos e me mantém sempre
jovem. O amor, dizem não se vive sem amor, amolece e você pega vício nisso. Daí
trepa como um animal para afastar essa moleza e vestir de novo seu colete à
prova de balas. No sexo não resmungo eu te amo a ninguém. Talvez tenha sussurrado
umas quatro vezes a pessoas diferentes que julguei merecedoras. E quem me
dispensa como um saco de lixo, saiba ou não saiba, leva consigo o meu ódio
eterno, sentimento que distribuo com a bondade de uma nonna dando doces às criancinhas. Não
vou matar os vagabundos só porque não querem me foder mais do que já foderam.
Se não matei meu pai, por que mataria um idiota que nem do meu sangue é? No fim
eu descubro que sempre tive sorte no amor, principalmente quando me abandonam,
essa é a verdade. Se você os visse agora como eu os vejo, me daria razão embora pouco me importe. Eu nunca quis estudar, não
uso óculos escuros para lhe dizer isso. Preferia ficar remoendo, pensando, olhando
o mar. Era muito bom. Mas mães querem que os filhos estudem para não cometer as mesmas merdas
que cometeram no passado. Eu era pequena e me submeti. A criança que eu tive
era muito covarde. Só os covardes odeiam. Deuses perdoam. Já perdoei muita
gente. O meu pai. Deus. Me sinto forte quando perdoo. Quando compro presentes caros.
Ajudo velhinhos a atravessar a rua. Ofereço um trabalho bom a um morto de fome.
Costumam me chamar de egoísta, mas sou bem pior do que isso se você não souber
tirar o melhor de mim com inteligência e um gesto suave. Claro que há momentos
de magnanimidade, como no dia em que me casei e parei de trair por sentimento
puro e altruísta. Não queria mais ver ninguém sofrer por minha causa, mas as
pessoas sofrem de qualquer jeito, acabam achando um motivo mesmo numa mesa
farta, num bolso cheio de dinheiro, num coração cheio de perfume, numa praia com
gaivotas. Hoje tenho uma profissão aceita pela sociedade, dentro da lei, como
minha mãe queria e fez. Minha vontade continua sendo a mesma da infância. Sair
matando. Justiçando. E justiça como eu entendo só se faz com sangue. Quando
estou sem o colete, escrevo poesias ridículas. Não tenho diários, minha vida
está no que escrevo. Agora estou com o colete e escrevo em prosa. O mesmo
resultado de merda. Ando com vontade de parar de escrever, não me leva a nada.
Mas não escrever me aborrece. O vidro vira borracha. Parece que preciso
falar com alguém, alguém que não conheço e não devo odiar ou amar. Alguém que
não dorme comigo e não vê as lâminas debaixo do meu travesseiro, os meus cães
de guarda na porta do quarto. Alguém que perde o tempo do ódio e do amor lendo
coisas que gente como eu escreve. Indiferente. Sufocando.