3.2.14

A primeira vez que abri os olhos era noite



A primeira vez que abri os olhos era noite. Lembro de luzes acesas no meio de uma escuridão larga. Mais tarde eu entenderia que aquilo devia ser a iluminação de uma rua, uma avenida, um centro de cidade. Não sei se da cidade onde nasci pois logo minha família trocou de lugar por outro mais ao norte, onde havia mais dinheiro e oportunidades de uma vida melhor sem pequenas misérias para atrapalhar. A outra noite de que lembro foi no meio do mar. Devíamos estar num barco pois vi água em vez de asfalto ao olhar para o chão. Foi uma sensação boa e virou lembrança na pele. Um forro de vinil. Eu vivia abrindo os olhos e vendo coisas, nem sempre as que devia. Meus ouvidos também escutavam o que não devia. Aos poucos fui percebendo todos esses buracos no meu corpo que traziam coisas que eu sentia boas e ruins. Devia haver uma escola, uma gangue, uma igreja, um mestre, para nos ensinar a não olhar ou ouvir o que traz ódio ao peito. Mestre era o que meu pai não era. Nem bandido. Um bêbado fracassado e ressentido espancador de mulher. Estuprador reprimido. Em mim nunca tocou ou eu o mataria. Usei chupeta para dormir até os cinco anos mas já sabia do poder de uma faca de carne bem afiada. Ainda criança dormia com uma debaixo do travesseiro. Minha mãe, como todas as mães esposas daquele tempo, era uma empregada doméstica do lar. Uma submissa esperando o momento seguro de atacar como uma cobra minúscula oculta num bananal. Cobras nem sempre se dão bem. Desde pequena eu queria matar qualquer filho da puta que julgasse erva daninha. Coisa ruim. Gente que bate em gente, que chuta animais, manda nos outros e fala demais. Gente rica, besta e arrogante. Os mentirosos. Os avarentos. Depois você vai vendo que precisa ser rico e mentiroso para matar a quem odeia e sair limpo. Rico de ódio, ir guardando tudo aos pouquinhos dentro duma caixa insuspeita de ressentimentos. O ódio é o motor que acelera meu sangue, endurece os músculos e me mantém sempre jovem. O amor, dizem não se vive sem amor, amolece e você pega vício nisso. Daí trepa como um animal para afastar essa moleza e vestir de novo seu colete à prova de balas. No sexo não resmungo eu te amo a ninguém. Talvez tenha sussurrado umas quatro vezes a pessoas diferentes que julguei merecedoras. E quem me dispensa como um saco de lixo, saiba ou não saiba, leva consigo o meu ódio eterno, sentimento que distribuo com a bondade de uma nonna dando doces às criancinhas. Não vou matar os vagabundos só porque não querem me foder mais do que já foderam. Se não matei meu pai, por que mataria um idiota que nem do meu sangue é? No fim eu descubro que sempre tive sorte no amor, principalmente quando me abandonam, essa é a verdade. Se você os visse agora como eu os vejo, me daria razão embora pouco me importe. Eu nunca quis estudar, não uso óculos escuros para lhe dizer isso. Preferia ficar remoendo, pensando, olhando o mar. Era muito bom. Mas mães querem que os filhos estudem para não cometer as mesmas merdas que cometeram no passado. Eu era pequena e me submeti. A criança que eu tive era muito covarde. Só os covardes odeiam. Deuses perdoam. Já perdoei muita gente. O meu pai. Deus. Me sinto forte quando perdoo. Quando compro presentes caros. Ajudo velhinhos a atravessar a rua. Ofereço um trabalho bom a um morto de fome. Costumam me chamar de egoísta, mas sou bem pior do que isso se você não souber tirar o melhor de mim com inteligência e um gesto suave. Claro que há momentos de magnanimidade, como no dia em que me casei e parei de trair por sentimento puro e altruísta. Não queria mais ver ninguém sofrer por minha causa, mas as pessoas sofrem de qualquer jeito, acabam achando um motivo mesmo numa mesa farta, num bolso cheio de dinheiro, num coração cheio de perfume, numa praia com gaivotas. Hoje tenho uma profissão aceita pela sociedade, dentro da lei, como minha mãe queria e fez. Minha vontade continua sendo a mesma da infância. Sair matando. Justiçando. E justiça como eu entendo só se faz com sangue. Quando estou sem o colete, escrevo poesias ridículas. Não tenho diários, minha vida está no que escrevo. Agora estou com o colete e escrevo em prosa. O mesmo resultado de merda. Ando com vontade de parar de escrever, não me leva a nada. Mas não escrever me aborrece. O vidro vira borracha. Parece que preciso falar com alguém, alguém que não conheço e não devo odiar ou amar. Alguém que não dorme comigo e não vê as lâminas debaixo do meu travesseiro, os meus cães de guarda na porta do quarto. Alguém que perde o tempo do ódio e do amor lendo coisas que gente como eu escreve. Indiferente. Sufocando.