4.10.15

Não fui eu que pedi



-- Vamos ver o que temos aqui.
Não fui eu que pedi. Ele quis ler.
O copo de água gelada suava em sua mesa. Ele abriu o caderno espiralado. Acendi um cigarro e fui até a janela do oitavo andar. Havia um comício lá embaixo. Um bando de cem com bandeiras de algo que pouco me importa. As janelas do antigo escritório eram gradeadas. Não pude nem descansar os cotovelos no peitoril. Mal vi o céu. Ouvia só sua respiração. Toda vez que alguém respira sinto falta de ar. Dois maços de ar. O cigarro ia acabar e ele ainda estava de cabeça virada para o tampo da mesa. Virava as folhas do meu livro devagar, puxava os óculos para a ponte. Atrás dele uma estante. Fui até lá. No caminho não bati as cinzas no cinzeiro da mesa. Joguei no chão atrás dele, fingindo olhar lombadas. Nada que me interessasse. Cartas Celestes, Zen budismo, Figures de Lukacs, Bertrand Russell, Contradições culturais do ca... um globo de vidro. Suspirei. Apaguei a guimba na palma da mão direita. No silêncio sem dor. Um mamilo começou a coçar. Não cocei. Fiquei esperando a sensação aumentar até ficar insuportável. O celular vibrou na mochila. Abri e desliguei sem nem ver a tela. Ele agora folheava mais depressa. Quando esse movimento acelerou, olhei por cima do seu ombro para saber em que parte do livro ele estava. Quase no meio. Que poemas eu havia colocado no meio mesmo? Aproximei-me do encosto de sua cadeira e fixei-me no caderno. Low-down. Ele lia Low-down agora. Na certa vai me sugerir um título em português. Ou título nenhum. De longe reli o poema. Quando acabei de passar os olhos no quinto verso, meu olhar escapuliu para a direita. Para o polegar que segurava a folha. Para a unha do polegar que segurava a folha bem no quinto verso. Aquele dedo branco, curto, grosso e de unha roída. Uma unha podre. Levantada, oca, amarelo-escura como catarro. Esse tempo todo ele passou aquela unha pelos meus poemas. Não sabia dos outros dedos por baixo da folha. Dos dedos que apertaram minha mão quando cheguei às 15h30 em ponto no escritório da editora. Sinto um bolo no estômago e volto para a janela, quero respirar. O comício chega ao fim. A pequena multidão se dispersa lentamente. A unha podre sobre os meus poemas. O ponto de ônibus começa a encher. Ele gira na cadeira. Estou de calça jeans e mangas compridas vermelhas. Olho minhas unhas. Um pouco roídas, mas perfeitas. Limpas. Quase transparentes. Ele me chama, ergo rápido a cabeça e sinto uma leve vertigem. Não sei se aquela unha fede. Se vou levar de volta para casa aquelas páginas fedidas. O ônibus enfim aparece e ele me estende o caderno sem um comentário. Não quero olhar. Jogo os poemas na mochila e fecho. Ele recosta-se na cadeira, toma um gole de água, olha para o teto pensando e depois sorri. Vai publicá-lo. Pago a passagem e sento num banco vazio. Quando o ônibus alcança o meio da ponte, atiro as folhas na Baía de Guanabara.