22.1.16

A Porca de Brandemburgo






Emil chega atrasado, senta na frente da estante, penteia o cabelo gorduroso em suaves ondas. Pega um dicionário em capa de neutro azul e posa para a foto. Ay, ay, ay, ay, ay, paloma. No Império do Eu, estou de uniforme riscadinho de cinza, rainha absoluta do que ganho de antemão. Não sou a única emissária do mundo, sou a Porca de Brandemburgo. Guardo meu rabo com AK-47. Dentro da garagem fechada. Dentro do carro fechado, motor ligado, rádio aceso. Ouço uma partida de futebol e percebo, com autoridade suprapensante, a existência do Outro. Um campo verde. O estádio cheio de botas desocupadas. Apupos. Gritos. A arma no banco de trás. Estou no meu sintoma. Emil perde meu tempo com sua má vontade. Carrego a máquina de novo, preciso despachar o material o mais rápido impossível. Emil olha minhas pernas. O editor olha minhas pernas. Vejo uma cozinha. A pia coberta de talheres de prata monogramados. As pernas cansadas de minha mãe servindo oficiais em Ravensbrück. Ay, ay, ay, ay, ay, cantaba. Ay, ay, ay, ay, ay, gemia. Quero fotografá-la. Emil, o Velho, cochicha com o editor. Nada dizem. É pose. A foto não fica boa. A Guarda de Ferro não está satisfeita de ser fotografada pela Porca de Brandemburgo. Uma porca premiada. Eu já li esse filho da puta e não li. Eu já vi esse nada e não vi. Pisco o olho para ser a vagabunda que todos esperam. A Lady Macbeth acorrentada. Mas o fuzil engatilhado me obriga a ser eu mesma o que tudo acontece. O espírito do velho estufa no peito. Clico outra vez. Um carro se aproxima a distância. Minha alma que regressa. Se parar nos fundos da casa, viro o braço e pego a Luger. Passa direto. O banco vazio dos meus pais manchado de sangue. "O mundo é grande demais para porquinhos preguiçosos, menina." Meu pai cortava a grama, mas era o vento. Eu sonhava com biscoitos e mariposas. Meu Citroën Traction Avant preto de 1911 cilindradas, 43 HP, 2 portas a ponto de explodir, ofereço ao velho uma carona até o VIe arrondissement, o máximo de milhagem que posso suportá-lo ao meu lado. O fedor de uísque e repolho contaminando o couro macio. Sozinho com a Porca de Brandemburgo, ele exibe um leve tremor nas mãos. Como um feto mexendo os dedinhos rosados manchados de nicotina. Meu sobretudo cobre a Kalashnikova saudosa de atividade. Prometi a ela um porvir. O cadáver do Mal. Olho para os lados, as ruas livres de soldados. Kalashnikova, minha irmã para todas as horas. Mudo de estação e ouvimos um discurso. Emil precisa de palavras e eu preciso que ele se distraia com palavras, com sua própria derrota. Estou à beira de um orgasmo violento enquanto controlo os pedais. Que vergonha, ele murmura dolorido, e fico apreensiva se descobriu o que se passa em meu corpo. Mas é só o discurso. Não consegue misturar dois planos. Os instintos já apagados no cinzeiro. O pensamento arde na minha pele, plenamente consciente da missão. O juiz apita, jogo encerrado. Os jogadores atravessam o pântano a caminho do túnel. Esgotados, descem escadas, vão para os chuveiros. Viro na última rua antes que ele pisque. Quero vê-lo se decompor na minha garagem enquanto mudo de estação. Ay, ay, ay, ay, ay, paloma.