22.5.16

On & On





Poeta quando bate a fama não fala mais Poesia – fala Literatura.
Deixa de ser Poeta – fala Escritor. Repara nessa tradição oral.
Começo a tremer. Pensei que esse mundo já havia implodido.
Estico o braço.
H começa sua performance.
Atende na linha 1.
O mercado quer romances.  
Pare de falar em poesia.
Dê voos mais altos. A poesia passou.
Estamos ao vivo. Com fatos.
A felicidade é uma câmera quente.
Uns escrevem para os outros. Entre si.
Eles mesmos se leeem. Se premiam. Reparo.
H jamais quis ganhar dinheiro com literatura.
Se quer ganhar dinheiro com literatura, você é um merda, diz.
Se te procuram para ler a mesma coisa, você está morto.
Quem do Largo os conhece?
Poetas e seus egos ridículos, ela aponta a seringa.
Minha irmã era professora primária. Usava uniforme limpo.
Ergo as mangas. Corrijo.
Dava aulas na Zona Oeste para eu poder ser poeta.
Traduzir-lhe as letras das canções.
Voltava para casa suja de terra.
Terra.
Ninguém olha o céu e as estrelas como você olha, disse H que a irmã disse.
Não posso abandonar a poesia agora. Trair um sonho.
Eu que já havia me vendido, calei.
Meu corpo inteiro é traição. Êmbolo.
O Ressentimento de H me bate como uma tara.
Foi a poesia de H que acabou.
Os poetas são seus próprios coveiros.
E o são em versos.
Engulo um maço de cabelos.
Entra a música.
Para escrever tem de ter ódio por dentro.
Areia nos dentes.
O relógio enferrujado do pai cravado no peito.
Você leu alguém que era assim.
Concordo. Apago.
Dou um gole no resto da cerveja.  
Vejo as palavras de H numa videoinstalação rigor mortis.
Minha irmã não me procura mais.
Vive em algum lugar.
É daí que tenho de começar.  
As luzes do Largo se acendem.
Olho a praia aterrada.
H não tem pressa.
Tem oito segundos.
Ombros.
Abaixo as alças do seu vestido.
Estamos em 1998.
Telhado Azul é o nome do bar.
Mesa do fundo.
Ninguém.
Lembro de um amigo assassinado.
Poeta.
Assassinado por evangélicos auto-homofóbicos.
Entre o medo e a fé, quebraram seu pescoço ao meio.
O crime ficou impune.
A Poesia não.
A saia plissada.
A Escola Normal.
Assassinadas por evangélicos da Zona Oeste.
Literatura, vai à merda.
Olhe as estrelas.  
Na bandeira nacional tem estrelas.
Ninguém olha as estrelas como você.
Uma primeira gota escorre.
Vou morrer no colo de minha mãe.
Assassinada de uniforme.
Ensinando inglês.
On & On.
Apago o cigarro na poça de meu sangue no chão.
Guardo o garrote.
H paga a conta com a correição de escritores famosos.
Olha a praia aterrada que eu vi.
Arrasta a cadeira.
Agora ela sabe línguas.
A poesia combalida de H me bate como uma tara.
Os pombos voam assustados quando saímos da água
e atravessamos o Largo para o deserto.