Alek
masturba-se olhando pessoas mortas. É assim desde que nos casamos. Como eu
poderia saber antes. Não que me importe. Tem muita gente assim no mundo. Tem
gente demais, o mundo. O universo autônomo. Nem sempre Alek tem um morto para
olhar. Fotografia não serve. Alek precisa de morto ao vivo. Descrevo os apetites de Alek a essa hora da manhã à mesa dessa cozinha fechada. Adoço o café uma, duas, três vezes, giro a colher e a deixo pingar sobre a mesa para a alegria de Myrmex. Mais tarde vou mandar esta carta a alguém.
Sim, porque isto é uma carta. Você não notou. Escrevo a
pessoas que não conheço. Você foi o escolhido desta vez. Endereços que me caem às mãos. Quero falar com desconhecidos. Contar o que se
passa comigo. O que desenvolvo em torno de mim. Rasgue se quiser. Não que me
importe. Não que eu saiba em quem Alek pensa enquanto arranhamos nossas carnes todos os
sábados ao cair da tarde numa sala cheia de quinquilharias de pássaros. Alek era poeta. Mostrou-me seus poemas dias depois de
nos conhecermos. Poemas frios. Simétricos. Um hino lombrosiano. Não gostei. Calei-me. Disfarcei
puxando seu braço para um beijo de língua demorado. Apressando seu coração. Eu
me calei tantas vezes que Alek não mostra mais nada. Nem conversa muito. Transporta-se. Mas eu
sei que não escreve mais poemas. Eu sei tudo. Não vigio. Observo. Apalpo. Ontem
cortei seu cabelo. Alek tem cabelos bonitos. Compridos. Fartos. Macios.
Peguei-os do chão e coloquei na minha cabeça. Alek riu. Riu tanto que achei
meio esquizofrênico aquilo e fui ler um livro. "Serviu-se de uísque com
água e nessa mistura deixou cair meio grama de cianureto de potássio." Poetas
deviam ter imaginação. Mas não, prefere arriscar-se em velórios, cenas de
acidentes fatais, hospitais, sanatórios, necrotérios. Imagino o dia em que numa
volta de esquina tope com um amigo morto. O que fará. Em que lugar. Não aqui.
Antes eu sabia definir com mais clareza meus sentimentos no papel. Hoje acho
que os construía e não me interessam mais. Há um zero em minha mente. Posso
partir daí. Ando pela casa. Tiro pó daqui e dali. Poeira me incomoda. Deixa
minhas mãos secas. O estilo ressentido. Que importa. Dormimos em quartos separados. Alek
acorda de cara feia e não quero mais isso na minha vida. Saber o motivo do
mau humor. Da angústia. De minha crueldade. Aborreço-o? Pelo endereço a sua casa deve ser bonita. Numa rua de luzes
trêmulas. Tranquila. Silenciosa. Não uma redação barulhenta de onde saem minhas
confissões. Alek e eu não lemos mais jornais. As notícias são ameaçadoras. O
mundo autônomo. Olho pela janela e vejo um pátio escuro. Bonequinhos de madeira
coxos em marcha pelos valores humanos. Alek quer mudar de profissão. Eu sempre encorajo coisas e animais. Depois do asfalto pode ser que venha o mar. Um peixe assado na areia quente do
sol. Um teto de palha só nosso. Lentidão. Perder a noção de tempo e números. Um
barco. Uma beira de estrada. Cigarras. Chuva. Adormecer com o ruído distante
dos aviões. Sem notícias de nossa personalidade. Nessa música, talvez se
esqueça dos mortos e se ocupe mais dos peixes. Não com prazer, mas de
alma consolada. Vazia. Curvada sobre a minha. Familiar. Apenas mais um pouco.