Acordo todo dia e ela já está no laptop trabalhando na cama. Tomo café e vou olhá-la. Ela ergue os olhos pra mim por trás dos óculos e diz sem falar O que você quer? Eu não quero, quero só olhar pra ela, espero uma palavra que não vem, desolada pego seu maço de cigarro ao lado do travesseiro e roubo um. Acendo. E quero escrever um romance. Saio do quarto, vou pro meu computador com o cigarro dela ainda em meus lábios. Escrevo isso. Não é um romance. Sei que vou parar daqui a minutos. Ouço Pelléas und Melisande. A cinza do cigarro cai na mesa. O cigarro dela está acabando. Já acabou na verdade. Precisamos mudar de bairro. O almoço está pronto, é só esquentar quando a barriga roncar. Reluto em começar a trabalhar. Meus cotonetes. Limpo as cinzas dela da mesa. Beverly Michaels-Wicked Woman não é lá tão atriz, mas tem um traquejo performático anti-Hollywood que me atrai quando diz, I'm sure the old guy is loaded with dough, tira o chiclete da boca e avisa a colega, Baby, sit tight, watch and learn. Uma malandrice hardcore inigualável. Só fez filme B e tem quase a altura de uma porta. Voz grave. Sedosa. Mulher tem de ter voz grave. Não me arrependo desta última frase. Como a voz das espanholas. Paro uns minutos para defecar e penso. Até o final do mês tenho de concluir a preparação dos originais traduzidos do escocês. E lembro de Joyce escrevendo a sua Nora: Você goza quando caga? Ou você se masturba primeiro e depois caga? Puxo a descarga e sento aqui de novo. Você se esfrega no bico da mesa? No bico do peito dela? E quero escrever um romance. O escocês escreve um a cada dia. Talvez eu devesse cagar menos. Trabalhar menos. Olhar para ela menos. Reinicio Pelléas. Pelléas. Pelléas. Já me foge das mãos o que dizer. O sol lá fora tem o tamanho de um sol. Vizinhos de ressaca gargalhavam quando passei para voltar ao meu quarto. O cheiro de churrasco me dá ânsia de vômito. Você goza quando vomita? Escreva um romance. Momento dramático agora no poema sinfônico de Schoenberg. Sou jogada no espaço sideral. Fico rodando e rodando. Como Pola Negri sonhando na cama em Die Bergkatze. Uma filósofa e psicanalista francesa morreu tentando salvar uma criança no mar. Tentando salvar um catarrento. Não me arrependo desta última frase. Não me arrependo. Não mesmo. A filósofa e psicanalista vai pro céu da França porque tentou salvar um catarrento e morreu. Que vida vale mais? Pro céu da França isso pouco importa. E pro deus do céu da França. Por que para mim deveria importar? A filosofia, a psicanálise, o catarrento, a França. O mar importa. O mar sabe escolher. O mar não quis o catarrento. Mares são sábios. Eu nunca quis um catarrento. E quero escrever um romance. Não, não quero. Eu não sou sábia. E morro na praia. Como uma filósofa francesa. Sem romance. Sem vida. Corpo estendido na areia. O catarrento ao lado dela treme enquanto a mãe, aliviada pela filosofia, o seca. O catarrento tosse e cospe no chão ao lado do corpo morto da filósofa. É verão na França. O catarrento vai depois pedir um sorvete. A filósofa abraça Derrida e os dois vão embora juntos se afastando da câmera como um filme idiota. A trompa faz um solo. 23 juillet. Découvert de la grande comète Hale-Bopp. O grande cometa Derrida avistado no Novo México e no Arizona. No árido e semiárido. Schoenberg está jogando ping-pong comigo. Minha cabeça gira em topspin e cai num vaso de planta. Ouve-se um minueto. Fico quietinha serenade e eles pegam uma bola nova. 23 juillet, escreveu Alain Leroy-Jacques Rigaut no espelho. "Para mim, o protagonista-suicida era um ser de outro mundo, mais distante que um chinês ou marciano." Você goza quando é imbecil?
La Nuit est transfigurée. O sol é branco. Fecho a página.