30.5.18

Quando uma mulher



Antes de mergulhar
secou na saia
o suor dos braços dele.

O livro acontece quando uma mulher cai do céu.


29.5.18

Madagascar



O barco que eu montei 
tem mais velas que um Cutty Sark.

Ponho no lago, naufraga.
Ponho no peito, arqueja até Madagascar.



A palavra que esvazia as coisas




Já não me ouvem do portão
não ouço mais seus gritos
respiro água

a areia cobrindo os degraus
o mar na palma das mãos

ela não responde
limpa com sal a mancha de vinho no tornozelo
e seus olhos por baixo dos cabelos
compõem a palavra que esvazia as coisas




24.5.18

goiabada





hoje à noite quero apanhar
só que antes um pão recheado de goiabada
e uma xícara de café bem quente

como é bom estar viva
e saber que isso não é para sempre











22.5.18

Baia



Na baia fria e escura
o cheiro de couro e arreios
a bondade nos seus olhos me exaspera
refocilamos palavras de amor
entre duas velas de sebo







18.5.18

Meio de rede



Metade da vida acabou em 2001. A outra metade em 2009. 

Hoje é um zumbi que escreve para amedrontar-se de melancolias. 

Os quadrinhos dos gibis da infância que lê antes de dormir 

não trazem-na mais de volta.  A fantasia não lhe diz. 

Para se divertir ri de piadas sem graça. 

Obseda-se com poemas. 

Se deixa os suicidas na cabeceira, tem pesadelos. 

Corta abacates com punhal de prata e os divide com os cães. 

Joga na posição meio de rede. 

Envelhece porque não se olha mais no espelho. 

Não saberia como antes entrar num bar ou repasto e conversar dez doses 

com amigos que falam como Bibi Andersson à Mesa da Paixão de Anna. 

Cassavetes lhe traz angústias indeterminadas que não pode suportar. 

Esses filmes que enfiam a faca e torcem. 

Procura trabalhar e só vê desespero nos que procuram. 

Houve fases assim antes, não adquiriu imunidade. 

Não se apressa em cavar buracos. 

Vai morar na garagem que sobrou do colapso de seus antepassados. 








O corpo vai e vai e vai

Is this the start of a new life?

3.5.18

Trigal




Pode ser tudo mentira. Pode ser que eu não seja tradutora nenhuma, muito menos poeta, e viva toda cagada num buraco dentro do equador celeste me estapeando com os abutres para comer. 
Pode ser que eu tenha os olhos molhados de tanto chorar baixinho como um retalho de cérebro na caçamba de lixo hospitalar. Pode ser que eu vomite sobre tudo o que leio. Que eu tenha mais nojo dos homens do que de um planeta de Dermatobia hominis. Mais nojo das mulheres e seus batons Karl Lagerfeld azedos e babados do que dos fungos comendo as estrelas dos céus de Van Gogh. 
Pode ser que eu roa as unhas até sangrar e prefira ouvir sirenes de ambulância à quinta de Mahler. Máquinas de cortar grama em vez dos lullabies da Lollapaloozaland.
Pode ser que eu seja o púbis gordo da mulher escondida no trigal.
A velha parada na porta da cozinha.
O F-16 do minimundo.
A desmembração de Hespanha.
A tensão de encher a parte onde se escreve.
O braço que alguém desce na segunda faixa. 








2.5.18

Açores





Açores


Vinte anos depois

ainda sentir aquecer-me a língua

o beijo da pessoa de menor importância.










Um cão latindo no meu sonho





Tem um cão latindo no meu sonho 
para outro cão no sonho do dia seguinte 
Há um suicídio de mulher 
em cada degola de animal 
Há um cão latindo 
noite após noite 
o medo de perder o meu pecado 
para outro com que me deito