Muito bem, então faltou luz hoje. Não posso trabalhar no pc, não posso ler porque está nublado e sombrio. Posso escrever nestas infiltrações de luz sob as coníferas ressecadas. R revira as gavetas lá dentro procurando uma ferramenta que não sei qual é para fazer não sei o quê. Quer pôr fogo na casa. Vou incendiar tudo, resmunga furiosa. Não vai sobrar telha sobre telha. Lamento pelos cupins e um habitante do forro, o gambá que espirra nos invernos. Lamentarei pelos livros? Não sei, dedicarei um tempo para pensar em tal. Vamos morar onde? Na rua! Sem-teto, mendigas. Bom, digo, as esmolas andam minguadas ultimamente com esta miséria nacional. Até a múmia centenária de Lenin governaria melhor que este demente. Venta aqui fora, mentira, estou dentro e a janela envidraçada bate atrás da minha cabeça a cada lufada, porque o vento é uma verdade. Se estivesse com candidissimum animus scriptoris, ou algo latinesco parecido, jogaria aqui algumas memorabilia, umas anedotas, umas filosofias com desconto de estação, minhas referências culturais ocultas na língua de vogais que criei, uns causos assombrosos sobre Hemingway que o pai catalão de uma amiga, fugido da Guerra Civil, nos contou – mas como a luz é pouca e este acampamento à beira do Åbjøra é totalmente selvagem frio e antieletricidade contra nós, me sobra ficar ao lado da fogueira anotando o entra e sai da imaginação enquanto a casa lambe com as chamas. Agora começa a chover. Entro na barraca puxo o cobertor e me abandono ouvindo Joni Mitchell nos fones com farelos de bolo de banana. Foi um bom tempo. Voltar de Woodstock era não saber como seríamos recebidos na volta à casa. Hoje não temos mais este problema. A chuva se recolhe. R pesca um cardume de peixes miúdos com puçá e lampião. Arenques. Os infelizes vieram da água doce e já saíram defumados, o que nos leva a sérias ponderações sobre mudanças climáticas. Ceamos ao lado do fogo crepitante que arde a última porta.
4.6.19
O arenque
Muito bem, então faltou luz hoje. Não posso trabalhar no pc, não posso ler porque está nublado e sombrio. Posso escrever nestas infiltrações de luz sob as coníferas ressecadas. R revira as gavetas lá dentro procurando uma ferramenta que não sei qual é para fazer não sei o quê. Quer pôr fogo na casa. Vou incendiar tudo, resmunga furiosa. Não vai sobrar telha sobre telha. Lamento pelos cupins e um habitante do forro, o gambá que espirra nos invernos. Lamentarei pelos livros? Não sei, dedicarei um tempo para pensar em tal. Vamos morar onde? Na rua! Sem-teto, mendigas. Bom, digo, as esmolas andam minguadas ultimamente com esta miséria nacional. Até a múmia centenária de Lenin governaria melhor que este demente. Venta aqui fora, mentira, estou dentro e a janela envidraçada bate atrás da minha cabeça a cada lufada, porque o vento é uma verdade. Se estivesse com candidissimum animus scriptoris, ou algo latinesco parecido, jogaria aqui algumas memorabilia, umas anedotas, umas filosofias com desconto de estação, minhas referências culturais ocultas na língua de vogais que criei, uns causos assombrosos sobre Hemingway que o pai catalão de uma amiga, fugido da Guerra Civil, nos contou – mas como a luz é pouca e este acampamento à beira do Åbjøra é totalmente selvagem frio e antieletricidade contra nós, me sobra ficar ao lado da fogueira anotando o entra e sai da imaginação enquanto a casa lambe com as chamas. Agora começa a chover. Entro na barraca puxo o cobertor e me abandono ouvindo Joni Mitchell nos fones com farelos de bolo de banana. Foi um bom tempo. Voltar de Woodstock era não saber como seríamos recebidos na volta à casa. Hoje não temos mais este problema. A chuva se recolhe. R pesca um cardume de peixes miúdos com puçá e lampião. Arenques. Os infelizes vieram da água doce e já saíram defumados, o que nos leva a sérias ponderações sobre mudanças climáticas. Ceamos ao lado do fogo crepitante que arde a última porta.