Canta meia música, lê meio parágrafo, bebe meio copo. O que você está fazendo. Tentando pôr algo no papel. Tentando escrever. Sim. Não é mais uma vontade, não é. É fixação, você já me disse isso. A meia porta do naufragado. Eu não posso mais ficar aqui ouvindo os seus dramas. Tenho uma reunião de trabalho agora. Diga a eles que concluí minha tradução ontem. Não sei se está boa. Preciso rever ainda. Entrego semana que vem. Por que você mesma não diz isso a eles. Por favor. Pelo menos é uma coisa que escrevi, nem que seja pela boca de outro. Não, foi o outro que escreveu pela sua boca. Tanto faz. Dane-se. Já vai. Sim. Quer que eu te deixe um café. Não. Meu estômago não vai suportar. Tente escrever agora. Ouça um clássico. Jazz, dependendo do tema. Vou te deixar em paz. Quem sabe sozinha sai algo dessa cabeça. Não, fique aqui comigo. Não posso. Seja adulta, vai. Todo o papel de que precisa tem aí. Apontei seus lápis. Não deve ser tão difícil pra você. Não é isso. Você está voltando a beber. Não devia. Eu preciso me acalmar. Tem os comprimidos. Eles me embotam. A raiva. Você devia encarar isso com mais profissionalismo. Não como um canal para a raiva. Mas o que você está dizendo. Nem me conhece mais. Pode ir para a sua reunião. Como quiser. Almoçamos juntas. Sim. Como quiser. O pássaro continua a bicar a vidraça como se me pedisse alguma coisa. Quer falar comigo e não consegue. Mande tudo pro diabo, ele diz. Escreva sobre mim. Escreva para mim. A menina entra no quadro da janela e puxa conversa com o pássaro. Ele foge. Não é sobre a menina que quero escrever. Não é para a menina que quero escrever. Já lhe dediquei muitas palavras e ela está do mesmo tamanho. Não cresceu. Ela sabe disso, por isso sempre volta aqui e espanta os pássaros que vêm me visitar e pedir que eu escreva para eles. Ela acha que escrevo para ela, mesmo quando não é, mesmo quando não escrevo nada. Acha que escrevo para ela para incentivá-la a escrever também. Mas a menina não quer ser como eu. Não quer ficar deitada na cama o dia inteiro desenhando letras. A menina sabe que tem um futuro pela frente numa profissão que ainda não escolheu. Ela nem pensa na mortandade que nos cerca e que me prende aqui. Quando for embora, o pássaro voltará à janela. Está lá no galho esperando, vejo daqui. Posso desenhá-lo. Sim. É o que farei. Tenho melhorado meu traço. Quanto menos escrevo, mais aprimoro meus desenhos. Uma coisa pela outra, ele diz, contente que a menina foi embora. Estou aqui com você agora. Faça um desenho meu. Natural. Como eu sou de verdade. Sem invenção. Quero ver como você me vê. Vou ficar aqui pousado, quieto. Posso cantar enquanto espero. Eu espero. Meio canto. Meio desenho. Meio eu e você.