23.7.21

Non-stop

 

Reduz a velocidade porque a estrada vai acabar  para o seu bairro começar na próxima curva. E ali o ar é mais puro frio. E ela pode respirar pela cabeça das estrelas. Difícil suportar. A cólera empedrada vai se desfazendo à medida que os pneus deslizam entre árvores. Inspira fundo ao chegar no posto pouco depois da entrada. Nada. Pisca os faróis e estaciona. A cerveja à espera na mesa. Todos conhecem sua rotina. Sua rotina conhece a de todos. Do marido, dos amigos. Faz a mímica de beijos atirados. Puxa a cadeira e senta. Todos já se fartaram. Tinham fome. Quem chega de uma viagem de quatro horas non-stop não tem fome. A maré do sangue precisa baixar. Dá um gole na cerveja. “Em Cabo Frio, todo mundo sabe que você foi rebocada.” Não entende do que estão falando. Acha que ouviu essa mesma frase num filme antigo de combustão espontânea. Apostaria que ninguém ali o viu. O jardim de vozes embaralha seus sentidos. Não consegue concentrar-se em nada do que dizem. Não ouve mais. Não opina. Não se interessa. Apenas uma lápide de cortesias emoldura seu rosto. Os olhos fixos na rua deserta lá fora. Nenhum automóvel costeia o posto para abastecer. O seu deserto químico. Não quer voltar para o carro e ligar o motor. Como justificar depois? Na bolsa não resta um frasco. Ri quando todos riem. Fica séria quando ficam sérios. Merda. Ninguém para. No desfecho do segundo copo da cerveja intragável, um automóvel enfim contorna as bombas e para na aditivada. O frentista aperta o gatilho e ela vai até a janela de um salto. O parapeito só para si. O cheiro da gasolina liberta-se do reservatório subterrâneo e o oxigênio se cala. Ela inspira fundo outra vez e aos poucos o cheiro de puro plâncton a acalma. Tudo muito simples. Muito basso ostinato. Nada mais tem esse poder. Nem drogas, nem perfumes, mantras, os antolhos de bons livros, um bom banho, um bom marido, um bom filho que a obriga a ser mãe quando queria ser filha para sempre. Só o aroma da gasolina vibrando pelo ar como “When I am laid in earth”. Sente-se aquecida agora. Naquele parapeito só para si. Como se escrevesse uma coisa pensando em outra. Quando saem do restaurante do posto, ela vê uma pequena poça de combustível escorrendo para o meio-fio. Agora. Tudo poderia dar certo. Ela para ao lado da poça. Acende um fósforo, coloca o cigarro na boca e olha para o marido com malícia. Na cabeça medíocre do homem ela está com saudade e ele se aproxima. Agora. Ela o abraça para ficarem um só. Agora. Não. E assopra a chama do palito: a Paradise within me, happier farr. O prazer mais íntimo não se divide com troianos.